Em dois anteriores programas falei-lhe sobre as duas primeiras histórias de Macau que se publicaram.
A primeira em 1836 da autoria do Sueco Anders Ljungstedt.
A segunda foi publicada já na primeira década do século XX, da autoria de Montalto de Jesus.
Ambas as obras tiveram em comum o facto de terem sido escritas originalmente em inglês e ambas terem sido muito mal recebidas.
A primeira, de Anders Jungiste porque apoiando-se em documentos afirmava uma verdade insofismável, mas politicamente inconveniente, que era o facto de a soberania de Macau, nunca ter sido concedida pela China a Portugal, não existindo qualquer documento oficial, que comprovasse essa fantasiosa doação.
A segunda de Montalto de Jesus, porque o autor decidiu incluir um epílogo na obra, sugerindo a entrega de Macau às Nações unidas tendo em conta, segundo ele, a continuada má administração que os portugueses faziam do território.
A História de Macau de Montalto provocou os mais irados fervores patrióticos, os exemplares da segunda edição foram mesmo queimados publicamente, numa espécie de auto de fé e o autor condenado pelos tribunais.
Mas para alem destas duas histórias existe uma outra, que é esta que tenho aqui.
Chama-se “Macau 400 Years”.
Originalmente publicada apenas em chinês, em 1988.
A tradução inglesa surgiria a público em 1996, ou seja três anos antes da transferência da soberania de Macau, de Portugal para a China.
O seu autor é o professor Fei Cheng Kang, da Academia de Ciências Sociais de Xangai e segundo ele próprio, esta tradução para inglês não segue exactamente a primeira edição chinesa, antes incluindo alguma documentação sobre o assunto que o autor viria a descobrir, nos arquivos, ou para os quais foi chamado a atenção por outros académicos, incluindo portugueses posteriormente.
Se comparações podem ser feitas, esta história aproxima-se bastante mais das teses de Ljungstedt, e distancia-se claramente das de Montalto de Jesus.
Claro que Fei Cheng Kang possuía à partida uma vantagem de que nenhum dos seus antecessores tinha beneficiado.
Dominava a língua dos arquivos chineses e teve acesso a eles, o que não aconteceu com Ljungstedt, ou Montalto que apenas tinha acesso às fontes portuguesas.
Só por estas razões vale a pena lê-la.
Mas eu chamaria a atenção para outro facto que é o de esta publicação, ao contrário das outras de que falei, não ter provocado qualquer reacção notável junto do público ocidental.
Não sei se por ter sido publicada num momento em que a transição decorria a pleno vapor, e tanto o publico leitor como os académicos estarem, então, preocupadas com outros assuntos de maior imediatismo e mediatismo.
Alguns consideram esta obra como uma espécie de versão oficial da história feita precisamente para servir de guia pós transição.
Isto tanto mais que surgia a público através de uma editora oficial da República Popular da China.
Não contesto este ponto de vista, mas não posso deixar de salientar que, independentemente, do grau de subjectividade, que qualquer obra de carácter histórico possui, o livro constitui um relato bastante, diria, imparcial, sobre os mais de quatrocentos anos de presença portuguesa em Macau.
Aliás entre várias apreciações sobre alguns episódios controversos dessa presença saliento um, que é o do breve e trágico consulado do governador Ferreira do Amaral em Macau.
Ferreira do Amaral foi a figura encarregada em finais da primeira metade do século dezanove de afirmar a soberania de Portugal em Macau, visando tornar o Território, numa verdadeira colónia, missão que cumpriu com empenhamento e sucesso, mas que lhe custaria a vida.
Fiquei algo surpreendido ao verificar que Fei Cheng Kang, trata a questão sem fazer juízos de valor, ou repetir chavões preconcebidos.
Claro que para os que entendem que a história de Macau é um assunto exclusivamente português, ou para quem ainda defenda visões redentoristas, que tiveram o seu tempo, mas há muito se tornaram totalmente extemporâneas, a obra poderá ser vista do mesmo modo que o foi a de Montalto de Jesus, ou Ljungstedt.
Para quem não tem preconceitos, acho que tem todo o interesse lê-la, porque se fica a conhecer outro lado da história.
Resta dizer que o autor, para além desta história tem publicado diversos trabalhos, vários deles relacionados com a presença ocidental na China, nomeadamente em Xangai.
É uma pena que “Macau 400 Years” continue bem mais ignorada do que merecia.
Não deixe também de dar uma vista de olhos pela bibliografia em que o autor sustenta esta obra vale a pena prestar-lhe também atenção.