A memorial seita da formiga branca 23-11-10

Devo dizer que não tenho nada contra a burocracia!

Contra os excessos de exercício da dita pela dita (àh…!) isso tenho!

Nesse contexto não posso deixar de recordar aqui o que se passou, já lá vão muitos e bons anos em Inglaterra com um amigo meu, num caso que acompanhei de perto, porque lá estava.

Foi um processo burocrático que desde então me deu a medida da fronteira entre o que é “red tape” (não traduzo este conceito para português porque não significaria mais do que a própria tradução literal francesa do termo) e burocracia mal entendida.

O caso foi que esse meu amigo teve um filho numa maternidade de “West London”. O menino nasceu saudável, revelou-se criança inteligente foi adolescente escolar com boas notas e actualmente é engenheiro reputado, razões pelas quais de sobra prova que não só nasceu como existe.

No entanto, à data, o pai da criança dirigiu-se ao consulado português na capital britânica a fim de pedir que lhe fosse passada uma “cédula pessoal”. A dita era um caderninho de poucas folhas e capas pretas que se diferenciava apenas dos certificados de vacinas pela cor. A das vacinas era de capas amarelas.

Resposta do atencioso funcionário: – Sim, mas é preciso uma certidão de nascimento. O meu amigo agradeceu a informação e dirigiu-se, acto contínuo, ao hospital onde o filho varão e seu primeiro orgulho (depois teve mais três) tinha nascido e pediu que lhe passassem uma “certidão de nascimento” do rebento. O funcionário hospitalar, por acaso uma senhora de meia-idade igualmente simpática e que de meia em meia frase dizia “Yes please”, olhou para ele surpreendido e respondeu depois de consultar um livro: – Não há dúvida de que nasceu. Está aqui escrito. O que é que quer ao certo?

-Uma “certidão de nascimento” respondeu candidamente o meu amigo.

A senhora, apesar de todas as explicações que lhe foram fornecidas continuava “puzled”, ou seja sem compreender bem o que lhe era pedido. Definitivamente não sabia o que uma certidão de nascimento fosse. No entanto perante tanta insistência vinda de dois estrangeiros. Gente sobre a qual os ingleses pouca ideia costumam ter acabou por satisfazer a nossa insistência que terá levado à conta de impertinências continentais sem importância de maior, ou seja “courious things about foreign people”.

Então? Se o nascimento ocorrera como constava do registo hospitalar, sem vestígios de falsificação aparente, para que eram preciso mais provas?

Todos três entendia-mos que assim era, mas o consulado português achava que não. Nesse contexto de concordância geral a paciente funcionária parece ter descoberto subitamente a solução que não apenas nos satisfaria pessoalmente, mas possivelmente também à burocracia exigente do “estranho” país (fossemos lá de onde fossemos) de que éramos cidadãos. Creio que nesse momento, pelo nosso aspecto moreno de bigodes hirsutos pensaria que na verdade éramos árabes recheados de “petro-dólares”, ou coisa que o valha.

Talvez por isso, pensando que os ditos árabes eram afinal quem lhe pagava o ordenado, isto a ter em conta as notícias dos “tablóides” que davam a Inglaterra como comprada pelos “sheiks” (e se calhar até pensava bem, sabe-se lá?…) a senhora, em vez de perder a paciência e nos mandar embora, abriu um bloco de notas sob a luz néon do balcão de atendimento e no papel em que anotava diária e indiscriminadamente o rol da mercearia, recados que os médicos lhe deixavam, números de telefone avulso e garatujas diversas, transcreveu de forma resumida o que constava do cardápio encadernado em folhas de couro sobre o novel bebé do meu amigo. Em seguida (cuidadosamente diga-se) rasgou a folha pelo picotado exibiu-a perante nós entre o indicador e o polegar e disse mais, ou menos triunfante

– Aqui está a certidão. “Are you happy now?”

– “Yes. Thank you very much” respondeu o pai requerente, que em voz baixa, como se a funcionária percebesse português me disse: – O consulado de certeza que não vai aceitar isto…. Achas que sim?

Eu achava que não, mas guardei de “Conrado o prudente silêncio”. Se calhar é capaz de não! mas afinal, é uma inglesa que escreve (lembro-me de ter pensado). Para Portugal a letra de qualquer inglês tem o mesmo valor de uma letra de crédito. A qualidade do papel em que escrevem seja o que for é o que menos interessa e para o consulado não deixará de ser, com certeza, igualmente assim.

Não sei ao pormenor o que aconteceu depois, mas certo é que o filho do meu amigo é hoje cidadão português e inglês. Com iguais direitos nos dois países e benefícios inerentes. Ou seja o livro base do hospital privado que o tinha dado como nascido ficou guardado nessa instituição (sublinho) privada com igual rigor como se o tivesse sido na “British Library”.

Esta história longa vem a propósito de uma conclusão bem mais curta que é esta: – Em Macau nas velhas tradições burocráticas dos “Filipes de Espanha” que inventaram o papel selado e nas dos funcionários estereotipados nos romances de Dostoyevsky (ou de Franz Kafka) certidões de nascimento, selos brancos e coisas que tais possuem valor absoluto independentemente de serem apócrifos, ou não. E nesse ponto damos plena razão à funcionária do hospital de Londres: “Então? se está escrito nos livros oficiais é porque é verdade!”. No Mundo anglo-saxónico os documentos originais (tal como nos arquivos da China) são preservados como se fossem sacro santos. Mas no mundo lusófono onde se encontram ao certo os documentos originais?

Em Macau, por exemplo, a verdade é que apesar das leis que obrigam a arquivar a história (nomeadamente a última) sobre a conservação de documentos datada de 1989 (que eu saiba) o que se verifica é que as certidões passadas muitas vezes se fundam sobre nada, ou muito pouco. Ou seja os documentos originais deixaram e continuam a deixar de existir, mais ou menos à vontade de cada serviço. Já não falo sequer dos chamados “papéis de Seda” (Sai Chi Key), por exemplo que não correspondem a qualquer registo de conservatória e muito menos se encontram no Arquivo Histórico. Mas nem sequer é preciso ir tão longe, nem vale a pena particularizar. Basta apenas perguntar aos serviços de Macau se sabem e cumprem nesta área particular a lei 7M3/89e que diz assim : Artigo 10.º(Conservação permanente)

1. Os documentos de conservação permanente não podem ser eliminados, devendo ser conservados nos serviços ou instituições a que pertencem sempre que tenham interesse para os mesmos. Ser incorporados no Arquivo Histórico, de acordo com as competências que lhe são conferidas (…) a título de arquivos definitivos. (…) Os serviços ou instituições a que os documentos pertencem podem proceder à sua transferência para suportes de cópia sempre que o julguem necessário.

Gostava de saber que serviços cumprem a lei no que toca à microfilmagem, ou passagem de arquivos para suporte informático? Gostava também de saber se algum serviço presta sequer atenção ao que a lei diz.

Mais, gostava de saber ainda se alguém classifica documentos (do ponto de vista histórico) de acordo com o que o Artigo 17.º que fala de Indestrutibilidade diz: –

“É proibida a destruição de arquivos privados classificados”. Alguém se preocupará na nossa Administração Pública em saber que arquivos privados classificados existem no seio dos seus departamentos (já nem falo dos exclusivamente privados, como os pertencentes a empresas públicas tais como a CEM. SAAM, CTM, TDM, Air Macau, e outras.

O Artigo 7.º (Selecção) diz que: – “A selecção é o processo que permite determinar os documentos que devem ser conservados ou que devem ser eliminados”. Pergunto-me de novo? Algum departamento público terá tido verdadeiramente em conta este artigo?

É minha convicção que o que existe com mais de dez anos e não constitui processo a “aguardar melhor prova” como se diz em linguagem judicial tem sido sem remissão deitado ao lixo. Não simplesmente por incúria, estou quase certo, mas muito mais provavelmente por falta de espaço para o efeito.

Neste ponto pergunto-me o que fazem os membros integrantes do Artigo 19.º que se chama Conselho Geral de Arquivos (CGA) que foi criado, como órgão consultivo do governo e ao qual alegadamente compete contribuir para a definição das políticas arquivísticas do Território, cabendo-lhe designadamente: – Propor os critérios de selecção, os prazos de conservação e o destino final da documentação. Dar parecer sobre todas as questões regulamentares e científicas respeitantes aos arquivos que lhe sejam submetidas ou sobre as quais entenda dever pronunciar-se.

Ao CGA compete igualmente reunir em sessão ordinária no princípio de cada semestre e, em sessão extraordinária, sempre que o presidente ou a maioria dos membros o requeira ou, extraordinariamente sempre que o Serviço de Administração e Função Pública o solicite.

Não tenho notícia de qualquer reunião ordinária, ou extraordinária deste CGA e provavelmente os membros que o integram (devido com certeza a muitos outros afazeres a que estão sujeitos) mal sabem que pertencem a tal comissão.

Para um historiador o caso é grave, mas para um funcionário público não deixa de o ser também, ou mais ainda. Principalmente quando por imperativos de serviço é necessário fazer um estudo sobre isto, ou aquilo.

Muitas vezes gastam-se milhões em novos estudos sobre os mesmos sujeitos que décadas antes foram dissecados, muitas vezes, até à exaustão. Como exemplo tenho presente o relatório, do governador Marques Esparteiro de 1956 que cita alguns planos que actualmente são encarados como novidades que o progresso impõe, mas de que ninguém se lembrou que já tinham sido iniciados (ou porventura mesmo concluídos) há mais de meio século. Igualmente não falo nos estudos técnicos, mais antigos ainda, subscritos pelas equipas do Almirante Lacerda, ou do engenheiro Adolfo Loureiro que directamente têm a ver, actualmente, com os aterros que estão a ser construídos nas imediações marítimas da Ponte da Amizade. Não! Peço apenas que cada serviço tenha consciência do que tem. Não deite fora o papel que eventualmente pensa que existe a mais nos seus armazéns. Se os não pode microfilmar, ou classificar, pelo menos entregue-o em bruto ao Arquivo Histórico.

Os ingleses (mas não só) da história por que comecei este artigo fazem-no há séculos numa tradição burocrática. Se quiser ir hoje ao hospital onde nasceu o filho do meu amigo, em Londres, há mais de 30 anos encontro certamente o seu registo. E se lá não estiver uma secretária atenciosa para além do inevitável “yes please” me dirá que o livro de nascimentos de 1973 foi enviado para tal, ou tal arquivo e com mais do que certeza absoluta o encontrarei onde me foi indicado.

No entanto hoje se tentar encontrar informação ainda que carimbado e numerada de um qualquer documento constante há apenas meia dúzia de anos num serviço qualquer, mas que não conste dos processos correntes passíveis de serem eventualmente consultados e que não contenha rara chancela de “classificado” o mais provável é que nem deles cinzas restem.

Felizmente que em Macau nesta a área a culpa nunca morreu solteira e como dizia Monsenhor Manuel Teixeira a responsabilidade foi e será sempre atribuída a uma e só delinquente e insidiosa “seita” que costuma dar pelo nome de “formiga branca”.

Pena é que sobre a questão nenhum poder constituídos tenha algum dia reivindicado competência para inquirir e nem “Provedoria de Justiça”, ou “Comissariado de Auditoria” se lembre de levantar a questão.

O corredor secreto 16-11-10

Naturalmente que perante a omnipresença japonesa em Macau o estatuto de neutralidade valia menos do que nada e foi isso mesmo que o comandante Gabriel Maurício Teixeira se apercebeu mal chegou ao Território. Isto bem ao contrário do seu chefe da administração civil Meneses Alves. Curioso será entender o facto de ambos serem convictos apoiantes e militantes dos princípios do Estado Novo não diferindo nesse aspecto em termos ideológicos. No que diferiam era nos termos práticos em que haviam de administrar um território cuja situação geopolítica internacional só teria paralelo com o Marrocos francês expresso por Humphrey Bogarth e Ingrid Bergman no filme “Casa Blanca”.

No entanto apesar de todas as eventuais semelhanças o cenário de Macau não era o de Casablanca nem a ficção, ainda que por vezes romântica, se balizava pelo preto e branco. Macau era uma película muito mais complexa. É que sobre as duas cores opostas imperavam todos os matizes de cinzento numa cortina tanto mais difusa quanto lhe emprestava o seu oriental exotismo.

Este esbatido cenário mostrava-se a toda a largura da boca do pano através de dois actores que se mantiveram em cena no palco macaense durante os quatro anos da guerra.

Um era o cônsul britânico John P. Reeves, o outro o seu homólogo japonês Fukui Yasumitsu.

John Reeves era um jovem diplomata quando chegou a Macau vindo de Mukden (actual Sheniang) local onde a guerra secreta se travava de um modo particularmente aceso entre o Japão, a China e as potências ocidentais. Alegadamente terá vindo para Macau para descansar. De que trabalhos e fadigas que outros dos seus colegas não tenham tido? Não se sabe nem era para saber. De facto a ordem oficial de descanso de Reeves não era mais do que uma cobertura já que o cônsul pertencia ao MI6 (Inteligence Service) organismo que dependia do Foreign Office. O posto que vinha ocupar estava longe de se assemelhar a uma estação de convalescença sendo sim uma das principais “antenas” do Extremo Oriente dos serviços de informações.

No que diz respeito a Fukui Yasumitsu a história era outra. Fukui era um funcionário diplomático cumpridor, mas com um espírito intrinsecamente civilista ligado ás correntes políticas que se opunham ao totalitarismo militarista que tinha tomado o seu país com a bênção do imperador Hiroito. No plano concreto Fukui, reflectia a opinião de correntes prevalecentes ainda que sem poder de decisão junto dos órgãos centrais de que a ocupação militar da China não passava de uma guerra perdida a longo prazo. A curto prazo representaria quando muito um investimento demasiado caro, tanto em dinheiro como em vidas perdidas sem possibilidade de retorno. Quanto ao slogan “a Ásia para os asiáticos” apregoado aos quatro ventos pelo “Império do Sol Nascente” Fukui entendia-o apenas como isso mesmo, ou seja um mero slogan que na prática não significava mais do que uma entrada tardia do seu país numa era imperialista que a Europa e os EUA tinham iniciado na China com a primeira “guerra do ópio” (1839-42).

Estes dois homens encontraram-se em Macau (se não se tivessem encontrado antes em Mukden) numa situação pouco menos que surrealista descrita assim: –

Macau é hoje um centro de espionagem japonesa e por sua vez de contra-espionagem chinesa. Registam-se com frequência na colónia atentados a chineses de tendências pró Japão ou mesmo com a simples suspeita de simpatia por ele (…) os nossos amigos de ambos os lados desconfiam de nós (…)mau é que nos tenham colocado nessa posição tornando qualquer movimento que não seja absolutamente claro, suspeito aos seus desconfiados olhos (…). Também os japoneses pensam e dizem que precisam dificultar a vida a Hong Kong que ajuda o governo de Chiang Kai-Shek permitindo que por ali se transporte material e artigos de guerra. (…) Se houver guerra a nossa posição já é diferente. A amizade secular com a Inglaterra pode ser um factor contra nós. (…) Os chineses suspeitam que Hong Kong não poderá dar-nos auxílio e, nestas condições, por sua vez, não nos olharão com os mesmo olhos com que nos vêm agora.

Em 1943 o Japão reuniu uma conferência histórica com os chefes de estado das nações do Sudeste Asiático: – Hideki Tojo (Japão), Wang Jingwei (China), Zhang Jinghui (Manchukuo), Ba Maw (Birmânia), Whaiwhai Thayakone(Tailândia), Jose Laurel (Filipinas) e Chandra Bose (Índia) todos estes tomaram parte na conferência que se realizou numa calorosa atmosfera em Tóquio. “A Ásia para os asiáticos” era o lema.

Esta era a súmula oficial da situação de Macau descrita em relatório secreto pelo bem informado cônsul português em Cantão Vasco Martins Morgado em 1938 no limiar da guerra e da chegada dos dois cônsules.

Curiosamente, Reeves e Fukuy iriam habitar em residência vizinhas nas faldas da colina da Guia mantendo amizade pessoal que não escondiam, nomeadamente ao marcarem presença conjunta em vários eventos sociais e desportivos patrocinados pelo governo de Macau, ou pelos respectivos consulados.

Esta situação mudaria radicalmente na sequência da ocupação de Hong Kong.

Embora permanecessem tão amigos como antes, os dois representantes diplomáticos, depois da declaração de guerra, não tiveram remédio senão considerar-se também formalmente inimigos.

Como prova disso mesmo fizeram questão em emparedar as janelas das respectivas vivendas fronteiras em que residiam a fim de vincar o corte de relações. Formalmente os dois cônsules deixavam dali para a frente de se falar. E nunca mais foram vistos juntos nos convívios sociais onde até então tinham sido assíduos.

O emparedamento das janelas não passou porém de mais outro formalismo (um tanto conspícuo) já que Fukui e Reeves se encarregaram de mandar construir “secretamente” um corredor entre as duas residências que permitia que se continuassem a encontrar ou a receber visitas sempre que assim entendiam fora de vistas indiscretas. E as visitas oficiais eram sem dúvida, principalmente, os agentes da “Kempentai” (polícia secreta militar) japonesa, comandada pelo coronel Sawa, que mantinham um pesado aparato de vigilância à casa do lado, ou seja de Reeves, seguindo-o sempre e ostensivamente de cada vez que se deslocava de casa para o consulado, ou para os diversos actos protocolares em que participava.

Quanto às instâncias portuguesas a construção do corredor não pareceu constituir infracção de maior já que não consta ter havido denuncia de obra ilegal efectuada a propósito, nem por parte dos fiscais das Obras Públicas nem da polícia, embora a construção fosse patentemente notado por todos os que por ali circulavam, incluindo as crianças do bairro de S. Lázaro que se perdiam em brincadeiras a poucos metros do local no Jardim Vasco da Gama e que do “secreto” corredor conheciam a história.

Apesar do benevolente semi-cerrar de olhos oficial ao anómalo convívio entre Fukui e Reeves o caso do “corredor” continua, ainda hoje, a constituir um total mistério. Terá sido ditado pela necessidade imperiosa de manter secretamente uma forma de contacto regular através dos dois homens entre as duas potências em conflito? É uma possibilidade, tanto mais que o dito corredor, não só permitia a passagem de Reeves, Fukui e respectivas famílias, como também a reunião informal de toda a espécie de pessoas que um ou outro dos dois cônsules pudessem convidar para suas casas. Nesse âmbito incluía-se Menezes Alves, chefe da Administração Civil, Pedro Lobo o todo poderoso chefe da Repartição dos Serviços Económicos, oficiais do exército, marinha e polícia, bem como os principais próceres das elites comerciais chinesas de Macau e Hong Kong (estes refugiados em Macau), e mesmo o próprio governador que conforme lhe conviesse poderia entrar oficialmente pela porta de “casa” do Japão, ou da Inglaterra sem ninguém saber ao certo se quebrava a neutralidade que o cônsul Morgado tão insistentemente defendia que tinha de ser preservada a todo o custo.

No entanto o corredor parece ter sido um elemento vital num conjunto de atitudes do consul Fukui que levantou suspeitas de infidelidade ao regime por parte do coronel Sawa.

Um dia ao sair de casa um comando de assassinos esperava-o à porta abatendo-o a tiros de metralhadora. A autoria do atentado não deixou dúvidas a ninguém. O coronel Sawa era o suspeito. No entanto, como o ataque foi levado a efeito por elementos de uma seita chinesa a suspeita não se provou. O governo de Tóquio lavrou um protesto diplomático e Lisboa não teve remédio senão pedir desculpas formais e pagar uma indemnização compensatória por um crime com o qual nada tinha a ver.

Macau 1941-45: Um anel de ferro a toda a volta 09-11-10

Falei a semana passada nas actividades clandestinas da resistência dos aliados em Macau contra a ocupação japonesa durante a Guerra do Pacífico. Um período de neutralidade precária que Macau viveu envolto no anel de ferro que os japoneses mantiveram em torno do Território que assim permaneceu virtualmente isolado do mundo exterior durante mais de quatro anos, particularmente após a queda de Hong Kong no Natal de 1941.

Irei ocupar-me agora da presença japonesa e da sua guerra secreta, mas antes é necessário traçar o quadro da situação nesses anos de brasa, sem o qual não é possível compreender uma situação essencialmente caracterizada por um jogo de sombras.

A neutralidade de Macau permitiu que ao longo de todos esses anos a “union jack” que flutuava diariamente no consulado britânico local fosse a única bandeira aliada visível em todo o Extremo Oriente depois de todas as outras terem sido humilhantemente arriadas, pelas forças nipónicas que em poucos meses tinham provado com a rápida conquista de Hong Kong e Singapura que a Inglaterra como super-potência não passava de um mito.

O Japão dominava de Norte a Sul, ou seja desde a Manchúria à Indonésia sem contestação e ameaçava a Austrália. A esquadra inglesa que “alegadamente” patrulhava o Pacífico tinha sido metida a pique pelas forças navais do almirante Yamamoto nos mares de Singapura e a maior parte dos militares de sua majestade o rei Jorge VI  encontravam-se irremediavelmente encarcerada nos campos de concentração das ex-colónias da costa da China e do Sudeste Asiático. Militarmente o Japão tinha provado a sua superioridade incontestável nos mares repetindo de uma forma exponencial a vitória que tinha obtido em 1905 contra os russos, quando se tornou o primeiro país não europeu a derrotar militarmente “sem apelo nem agravo” um potência ocidental o que lhe permitiu começar a falar de igual para igual com o que então era designado como o “mundo civilizado”.

Nesse contexto, Macau não foi engolido pela força avassaladora do “Sol Nascente” apenas porque Lisboa decidiu adoptar uma politica inversa à que a República tinha adoptado na “1ª Guerra”(1914-18) e que tinha feito com que Portugal “à autrance” tivesse praticamente “obrigado” a Inglaterra a invocar a “velha aliança” a fim de se fazer participar no conflito.

Desta vez os argumentos de Portugal foram esgrimidos ao contrário. A “velha aliança” manteve-se, desta vez, guardada nas gavetas do Ministério dos Negócios Estrangeiros e a Inglaterra agradeceu. Para Londres a neutralidade de Portugal convinha muito mais do que a beligerância activa que o “Foreign Office” tinha pedido na primeira conflagração mundial, quando solicitou a apreensão dos navios alemães surtos nos Portos portugueses.

Independentemente dos argumentos que hoje possam ser aduzidos relativamente à atitude do ditador Salazar perante a guerra certo é que no que diz respeito exclusivamente a Macau essa posição representou a salvação do Território, não só durante o conflito, mas imediatamente após. Isto porque assinada a rendição do Japão em Agosto de 1945, o futuro da colónia britânica de Hong Kong esteve por um fio face às reivindicações nacionalistas do partido Kwomintang e ao facto de os Estados Unidos terem acordado com Chiang Kai-shek que Hong Kong seria entregue à China logo que os japoneses fossem expulsos do país. Nesse contexto Macau ficava desde logo (como ficou) pela neutralidade decorrente da política externa de Lisboa fora de qualquer pré acordo internacional que pudesse existir e livre para negociar com qualquer das potências que emergissem vencedoras.

Por outro lado, no âmbito estritamente militar Macau era na verdade um território inerme, por muito que a doutrina do Ministro da Defesa Santos Costa afirmasse que todo o ultramar português era defensável. Essa doutrina estava longe de corresponder a qualquer realidade, particularmente no que a Macau dizia respeito. Isto apesar das grandes obras de engenharia militar (decorrentes dessa doutrina posta em vigor na segunda metade dos anos 30 do século passado) que foram levadas a cabo e que ainda hoje podem ser observadas em parte nos extensos “bunkers” existentes na zona envolvente do Farol da Guia que no limiar da guerra chegaram a estar eriçados de potente artilharia de costa. Sublinhe-se que antes de dispararem um tiro que fosse os imponentes canhões que ali foram montados tão depressa o foram como o seu destino se cifrou em rápido desmonte. O inusitado afluxo de refugiados que mais do que duplicou a população do Território ditou o inexorável desmantelamento da artilharia que seria ingloriamente vendida aos japoneses em troca de arroz base fundamental da sobrevivência da cidade.

Complexo semelhante ao da Guia existia também em toda a linha de fronteira terrestre na zona das Portas do Cerco. Uma verdadeira colmeia subterrânea capaz de conter uma guarnição de três mil homens. Deste porém hoje nada resta depois das obras que ao longo das últimas décadas foram sendo feitas naquela área.

Apesar de toda a aparente imponência, o dispositivo militar de Macau não passava de um “tigre de papel” como se diria nos tempos da “Revolução Cultural”. De facto nessa época a guarnição militar era constituída por 497 homens, sendo 22 oficiais do exército, 35 da marinha e 440 soldado, cabos e sargentos, 224 dos quais eram elementos recrutados em Moçambique que constituíam as companhias de “caçadores indígenas” (Landins).

Aviação Naval de Macau em 1941 (Foto: – macauantigo.blogspot.com)

Para além destas o dispositivo militar era integrado por uma companhia de metralhadoras, e outra de artilharia. Os destacamentos militares da Taipa e da Ilha Verde completavam o diagrama operacional. O apoio aéreo era garantido por 4 hidroaviões “Hawker Osprey” da Marinha, que tal como os canhões da Guia acabariam igualmente por se desvanecer em mãos obscuras resultantes de negócios de emergência ditados igualmente pela necessidade de adquirir bens essenciais.

Neste contexto qualquer tentativa de resistência perante o invasor japonês nem sequer à partida seria concebível, a não ser para os alegados estrategas de Santos Costa confortavelmente instalados nos sofás do Ministério da Defesa no Terreiro do Paço que apenas pretendiam mostrar serviço desenhando planos de batalha fabulosos sobre mapas de conjuntura geográfica e estratégica essencialmente desactualizados. O plano consistia em resistir até à chegada de reforços. Mas que reforços? Perguntar-se-ia sabendo-se que as forças armadas portuguesas não possuíam nem efectivos nem meios de transporte suficientes para enviar forças expedicionárias fosse para onde fosse. Mesmo o Estado de Goa que era a colónia mais próxima e mais forte não possuía meios capazes para se defender a si própria quanto mais enviar um corpo expedicionário para Macau!

A mobilização do então tenente Bragança (já falecido) é ilustrativa desse contexto militar pouco menos que desolador. O tenente Bragança foi mobilizado para Macau como comandante da defesa anti-aérea viajando juntamente com o governador Maurício Teixeira, de quem tinha aliás opinião politicamente pouco favorável. Sendo voluntário para o efeito e havendo vaga pouco interessava ao estado-maior do exército que soubesse ou não como operar artilharia contra aviões. Todavia o tenente como era escrupuloso (disse-mo, em entrevista que lhe fiz para a TDM em 1997) em vez das férias a que tinha direito, antes de partir, decidiu antes tomar algumas lições de como operar com as novas baterias que iria ter por comissão comandar. Para espanto seu (e nosso) o seu voluntarismo confrontou-se com o aborrecimento expresso do comandante da defesa anti-aérea de Lisboa que achava que o estatuto de um oficial estava acima de trivialidades tais como essas de saber apontar uma metralhadora pesada “Bren” e carregar num gatilho para abater um avião inimigo.

Certo é que, quando a aviação americana bombardeou o Porto Exterior em Janeiro de 1945 as metralhadoras anti-aéreas de Macau não dispararam um tiro. Ou porque os artilheiros não estavam nos postos de combate, ou porque o tenente Bragança não estava lá para os liderar, já que por ignotos imperativos de serviço se encontrava a comandar um pequeno pelotão estacionado bem longe na ilha de Coloane.

Pouco tempo depois do tenente Bragança e do governador Maurício Teixeira chegarem a Macau (Outubro de 1940) a Hong Kong chegavam também consideráveis forças canadianas para reforçar as suas defesas acrescentando mais tropas aos 52 mil homens que constituíam a guarnição da colónia.

Simultaneamente a Singapura chegavam os cruzadores “Prince of Wales” e “Repulse” (glórias da “Primeira Guerra Mundial” ingloriamente torpedeadas pela moderna marinha do “Sol Nascente” mal arribaram ao Estreito de Malaca) para apoiar os 82 mil homens que defendiam a cidade.

Apesar de todas essas demonstrações de força e reafirmações propagandeadas pela “BBC” de que a presença britânica no Extremo Oriente era inexpugnável, Singapura e Hong Kong renderam-se em poucos dias com pesadas baixas. Em Singapura caíram em combate 9500 homens. Em Hong Kong 2113. Nesse contexto de hecatombe que poderia fazer Macau, com os seus 497 soldados? Nada! Ou então fariam o mesmo que fez Vassalo e Silva em Goa em 1961, que se rendeu em 36 horas porque perante uma força invencível sacrificar vidas era opção sem sentido.

Mas, felizmente que, Maurício Teixeira não era Vassalo e Silva, nem Macau estava tecnicamente em guerra. Por isso, o governador, cuja biografia está ainda por fazer, comandou durante cinco anos um teatro de operações de marionetas sombrias e letais cujos cordelinhos que as manipulavam fugiam quase por inteiro ao seu controlo.

Por isso, quando A 5 de Agosto de 1946, o comandante do aviso  “Afonso de Albuquerque”, Samuel Conceição Vieira assumiu as funções de encarregado do Governo, por um período de treze meses, em substituição de Gabriel Maurício Teixeira, “afastado de Macau, a pedido das autoridades chinesas, que o acusavam de ter colaborado com os japoneses durante a guerra do Pacífico” consumava-se finalmente o teatro de todas as farsas que tinha sido o Extremo Oriente em chamas desde 1937. Tudo porque durante cinco anos a neutralidade de Macau não passou de um mito. Os senhores da colónia portuguesa eram de facto os japoneses. O seu “shogum” era o frio e implacável coronel Sawa, chefe da temível “Kempentai” a polícia secreta do Imperador do Japão na província de Guangdong.

Dele pouco se sabe, mas do que fez há notícia bastante para lhe traçar o perfil terrorista. Falarei dele na próxima semana.

A guerra em campo neutro 02-11-10

Ao longo dos quatro anos do chamado conflito do Pacífico Macau manteve-se território neutral mas a guerra ainda que uma forma muito mais insidiosa também teve também aqui o seu teatro ao longo desse angustiante período e apesar de toda a neutralidade oficial.

A neutralidade de Macau foi diplomaticamente e na generalidade respeitada tanto pelos japoneses como pelos aliados, ao contrário do que aconteceu em Timor onde a intenção australiana de ali firmar pé levou o exército nipónico a ocupar a antiga colónia portuguesa.

Apesar disso porém Macau não deixava de ser igualmente uma frente de combate ainda que esse combate fosse levado a cabo por soldados vestidos à civil, guerrilheiros, mercenários e espiões. Aqui todas as forças estavam na primeira linha, mas os diferentes exércitos em vez de se misturarem em sangrentas batalhas digladiavam-se nas sombras. Saber quem era o inimigo foi tarefa impossível até ao final da guerra.

O Hotel Central, situado na Almeida Ribeiro, por exemplo era uma verdadeira Babilónia, onde se entrecruzavam em festas quase permanentes agentes de todas as cores. Fardas do exército português rodopiavam em memoráveis bailes por entre uniformes do “Império do Sol Nascente” e caquis das forças de Wang Jingwei, o presidente chinês do governo de Nanquim marioneta dos japoneses. Jovens mulheres das mais diversas proveniências, desde Yokohama a Harbin e às vezes de mais longe ainda condensavam uma atmosfera envolta em volutas de fumo e eflúvios de álcool no que se diria uma transposição literal dos loucos anos 30 que fizeram a imagem de Xangai. Nesse ambiente de cacofonia, nas na pista de dança e nas mesas que a circundavam segredavam-se os diálogos mais inconcebíveis. Desde informações de valor estratégico para o combate que troava do outro lado das Portas do Cerco a convenientes boatos, passando por negócios escuros, ou apenas negócios, até inocentes juras de amor eterno. Nestes casos o termo “eterno” era um tanto despropositado, pois a eternidade desses tempos em Macau nunca ia muito além da manhã do dia seguinte, já que o futuro constituía para toda a gente a mais total das incógnitas.

Desse ambiente, para além de algumas descrições vivas que se podem encontrar nalgumas obras do romancista Leal de Carvalho, por exemplo, o testemunho do antigo deputado do Conselho Legislativo de Hong Kong, Rogério Lobo (Sir Roger Lobo) constitui uma breve mas elucidativa síntese: – “Eu nunca senti ódio dos chineses a soldo dos japoneses, ou dos próprios japoneses em Macau. Para mim eram apenas pessoas que faziam o que tinham a fazer. Eu fazia também o que tinha a fazer”. O testemunho de Rogério Lobo é tanto mais exemplar quanto ele próprio pertencia uma das mais célebres redes de espionagem que operou durante a “Guerra do Pacífico” no Sul da China com quartel-general em Macau. – “Nos fazíamos parte do British Army Aid Group essencialmente encarregado de enviar para a China livre os pilotos dos aviões que eram abatidos nesta região, ou que conseguiam chegar a Macau. nós conseguíamos retira-los e faze-los regressar às suas unidade de origem. O grupo de “inteligência” passava-nos as informações de modo a conseguirmos localizar os pilotos e coloca-los em juncos depois de nos assegurarmos que a costa estava livre. Essas operações eram normalmente feitas com dois juncos. Um era a motor e suficientemente barulhento para atrair a atenção das patrulhas japonesas. Seguia de maneira a ser deliberadamente apanhado. O outro era o que na verdade transportava o fugitivo escondido e que calmamente rumava sem embaraços com destino à China livre. Eram operações arriscadas. Para nós, para os pilotos, enfim, para toda a gente (…) Recebia as ordens de missão normalmente pela manhã cerca das 10, ou 11 horas durante os jogos de ténis modalidade que praticava. Depois lá ia. Aprendemos a nunca falar sobre o que fazíamos. Nem mesmo com meu Pai alguma vez discuti esses assuntos. O grupo fazia parte da estrutura comandada por Lord Mountbatten”.

Assim, ao longo desses anos Macau foi de facto um palco de guerra e não só um oásis de paz, como aparentemente se poderia ser levado a pensar pela maior parte das memórias que foram sendo recolhidas de quem viveu esses tempos. O lado sombrio e clandestino da guerra permaneceu por isso bem guardado no silêncio das memórias tanto mais que as actividades de espionagem se mantiveram abrangidas pelas leis do segredo de estado até muito depois do final do conflito com a rendição formal do Japão no dia 2 de Setembro de 1945. Por isso revelações extemporâneas, mesmo já em tempos de paz poderiam ser alvo de pesadas condenações nos tribunais civis e militares ingleses, americanos, ou chineses.

No caso português o regime de Salazar possuía ainda meios de coação adicionais que eram a PIDE e os tribunais plenários que até 25 de Abril de 1974 se mostraram sempre lestos em descobrir atentados contra a Nação, mesmo nas mais inócuas das memórias, quer fossem dadas à estampa, ou apenas conversadas em tertúlias de café.

Como abóbada a encerrar todos os segredos por contar acresce ainda a panóplia de traidores e agentes duplos que faziam com que na Macau da “Guerra do Pacífico” nunca se soubesse ao certo quem era quem. A figura do jovem William Gardner, fica para a história como um paradigma.

Gardner era um dos milhares de refugiados que a Macau se acolheram e que deu nas vistas por alegadamente se “bandear” abertamente com os japoneses. Por isso era visto com maus olhos por todos os que simpatizavam com a causa aliada e que constituíam a maioria, mas não só. Diz-se que Gardner chegou a passear-se na Almeida Ribeiro e nos salões do Hotel Central armado e ostentando um uniforme japonês. Por isso sofreu quatro anos de segregação e seus próprios pais não escondiam a vergonha que sentiam pelo comportamento do filho. No entanto, selada a paz Gardner surgiria inopinadamente aos olhos dos que o condenavam vestido, agora sim, com o seu verdadeiro uniforme que era o do exército dos Estados Unidos e integrado numa delegação militar do seu país. Ao peito refulgia para maior espanto de todos a condecoração que lhe tinha sido imposta por relevantes serviços prestados em campanha à causa aliada.

Os guerrilheiros esquecidos do Rio de Leste 26-10-10

Como tenho vindo a dizer a história é assunto delicado de pegar.

Por um lado não se pode fazer sobre o acontecimento, porque é necessário distanciamento no tempo relativamente aos acontecimentos.

Por outro historiar, em muitos países, ainda hoje significa, por vezes, ofender o poder político vigente com as consequências que tais ofensas acarretam.

E por vezes não são poucas.

Muitos que se atreveram a “esgravatar o passado” foram parar às cadeias, ou caíram mesmo perante os pelotões de fuzilamento (noutros tempos claro!).

Goya deixou desenhos elucidativos sobre esse assunto.

Basta olhar para os seus quadros e esboços sombrios para ter uma ideia do que é pugnar pela verdade contra a verdade que os poderes soberanos de ocasião entendem que deve ser.

Portanto, porque não convém, politicamente, ou porque não é oportuno, ou mesmo porque é arriscado, muitas memórias que muitas vezes poderiam explicar com simplicidade o rumo dos acontecimentos no mundo permanecem ignoradas, ou pudicamente auto-obliteradas porque não convém. Por isto, ou por aquilo…

Essas lacunas só contribuem para lançar véus de mistério desnecessários sobre as razões pelas quais as sociedades se comportam de um modo e não de outro. Por vezes o mundo aparenta mover-se de forma incoerente, mas na verdade os resultados sociais decorrem sempre de causas anteriores bem definidas. Conhecendo-se as causas o rumo da marcha dos povos torna-se então mais discernível

Às vezes, decisões políticas e estados sociais radicam em factos históricos marcantes mas que pelas razões apontadas foram relegados para o esquecimento apenas porque a conjuntura política o determinava e a bruma impõe-se.

É o caso narrado no livro: “East River Column. Hong Kong Guerrilhas in the Second World War and After.

Em português, qualquer coisa como “A Coluna do Rio de Lestes. Os guerrilheiros de Hong Kong durante a Segunda Guerra Mundial e depois”.

Mas o que era a Coluna do Rio de Leste?

Em resumo pode dizer-se que era um grupo de patriotas liderado pelo Partido Comunista da China (PCC), sobre os ombros de quem pesou a maior responsabilidade na resistência contra a ocupação japonesa desde 1937 em diante, nesta região do país. A coluna era composta por umas centenas de militantes que iam de intelectuais a camponeses e pescadores iletrados unidos pelos anseios de liberdade contra a opressão nipónica. Não muitos seriam verdadeiramente comunistas no sentido militante do vocábulo, mas certo é que estavam enquadrados nas fileiras e operavam de acordo com a estratégia do partido.

Esse grupo não só manteve em cheque as forças japonesas, como prestou igualmente um auxílio valioso (atrás das linhas) aos exércitos aliados no Leste Asiático, no campo de batalha e no domínio das informações tácticas e estratégicas de auxílio à campanha.

Por outro lado teve também uma acção de relevo no apoio à fuga de numerosos prisioneiros de guerra aliados internados nos campos de concentração japoneses de Hong Kong.

Memorial dedicado à luta dos guerrilheiros contra a ocupação japonesa na província de Guangdong.

Pergunta-se então. Se tiveram uma acção tão relevante, porque é que pouca gente sabe hoje que Coluna tenha sido essa?

A explicação é simples.

No final da guerra, à Inglaterra, ao reocupar Hong Kong, convinha não hostilizar o governo nacionalista, do Kwomintang que tinha lutado bem mais contra os comunistas do que contra os japoneses e a “Coluna do Rio de Leste” era o braço armado do PCC na província de Guangdong. Não era o governo oficial da China. Só o viria a ser no final da guerra civil em 1 de Outubro de 1949.

Por isso, embora reconhecendo os esforços valorosos empreendidos pela Coluna durante a guerra as autoridades britânicas com o seu habitual pragmatismo, preferiram conferir uma ou duas medalhas de mérito em combate a alguns dos seus líderes, oferecer uns pequenos montantes em dinheiro aos guerrilheiros reformados que optaram por permanecer em Kowloon e nos Novos Territórios regressando às suas antigas ocupações e deixar cair, naturalmente, o assunto no esquecimento

Do outro lado da fronteira, guerrilheiros e dirigentes foram por seu turno alvo de reconhecimento, mas apenas momentâneo.

É que com a “Revolução Cultural” (1966) triunfante esses combatentes acabariam também por ser acusados de estar ao serviço do imperialismo. Isto apesar de a acusação se basear apenas no facto de durante a guerra terem mantido estreitos contactos com as forças aliadas e por força das circunstâncias com os Nacionalistas do Kwomintang. Por isso ter pertencido à Coluna deixava novamente de ser pergaminho a ostentar mas antes passado a esconder se possível.

É caso para dizer como dizia o nosso Afonso de Albuquerque: – “Mal com os Homens por Amor de Deus, mal com Deus por amor dos Homens”.

Finda a Revolução Cultural, a China de Deng Xiaoping, não demonstrou interesse em reabilitar memórias e Hong Kong em processo de transição de soberania também não.

E assim, a “Coluna do Rio de Leste”, desapareceu nas brumas da bibliografia e quase da história, como se nunca tivesse existido.

De facto, até surgir a obra que temos vindo a referir praticamente nada se escreveu sobre o assunto, que continuava a não agradar a gregos nem troianos.

Quem decidiu lançar uma pedrada no charco foi Chan Sui Jeung, que se arrojou à empresa de tirar do anonimato esse grupo de heróis que chegou a ser classificado, em certos pontos da história, como “bando de malfeitores”.

O livro é recheado de peripécias, e resultou de numerosas entrevistas que o autor manteve com os sobreviventes da Coluna, bem como da consulta dos arquivos disponíveis.

Um livro, que apesar de tratar essencialmente de Hong Kong, não deixa de salientar o importante papel que Macau desempenhou na luta contra a agressão japonesa, apesar da sua neutralidade na guerra.

O autor, Chan Sui Jeung, é licenciado pela Universidade de Hong Kong e foi durante vários anos administrador civil nos Novos Territórios, local onde viviam muitos dos guerrilheiros que integravam a Coluna, dos quais teve oportunidade de recolher memórias inestimáveis.

De Macau, por enquanto, sabe-se apenas que integravam a coluna 60 guerrilheiros de resto não parece saber-se mais nada.