Devo dizer que não tenho nada contra a burocracia!
Contra os excessos de exercício da dita pela dita (àh…!) isso tenho!
Nesse contexto não posso deixar de recordar aqui o que se passou, já lá vão muitos e bons anos em Inglaterra com um amigo meu, num caso que acompanhei de perto, porque lá estava.
Foi um processo burocrático que desde então me deu a medida da fronteira entre o que é “red tape” (não traduzo este conceito para português porque não significaria mais do que a própria tradução literal francesa do termo) e burocracia mal entendida.
O caso foi que esse meu amigo teve um filho numa maternidade de “West London”. O menino nasceu saudável, revelou-se criança inteligente foi adolescente escolar com boas notas e actualmente é engenheiro reputado, razões pelas quais de sobra prova que não só nasceu como existe.
No entanto, à data, o pai da criança dirigiu-se ao consulado português na capital britânica a fim de pedir que lhe fosse passada uma “cédula pessoal”. A dita era um caderninho de poucas folhas e capas pretas que se diferenciava apenas dos certificados de vacinas pela cor. A das vacinas era de capas amarelas.
Resposta do atencioso funcionário: – Sim, mas é preciso uma certidão de nascimento. O meu amigo agradeceu a informação e dirigiu-se, acto contínuo, ao hospital onde o filho varão e seu primeiro orgulho (depois teve mais três) tinha nascido e pediu que lhe passassem uma “certidão de nascimento” do rebento. O funcionário hospitalar, por acaso uma senhora de meia-idade igualmente simpática e que de meia em meia frase dizia “Yes please”, olhou para ele surpreendido e respondeu depois de consultar um livro: – Não há dúvida de que nasceu. Está aqui escrito. O que é que quer ao certo?
-Uma “certidão de nascimento” respondeu candidamente o meu amigo.
A senhora, apesar de todas as explicações que lhe foram fornecidas continuava “puzled”, ou seja sem compreender bem o que lhe era pedido. Definitivamente não sabia o que uma certidão de nascimento fosse. No entanto perante tanta insistência vinda de dois estrangeiros. Gente sobre a qual os ingleses pouca ideia costumam ter acabou por satisfazer a nossa insistência que terá levado à conta de impertinências continentais sem importância de maior, ou seja “courious things about foreign people”.
Então? Se o nascimento ocorrera como constava do registo hospitalar, sem vestígios de falsificação aparente, para que eram preciso mais provas?
Todos três entendia-mos que assim era, mas o consulado português achava que não. Nesse contexto de concordância geral a paciente funcionária parece ter descoberto subitamente a solução que não apenas nos satisfaria pessoalmente, mas possivelmente também à burocracia exigente do “estranho” país (fossemos lá de onde fossemos) de que éramos cidadãos. Creio que nesse momento, pelo nosso aspecto moreno de bigodes hirsutos pensaria que na verdade éramos árabes recheados de “petro-dólares”, ou coisa que o valha.
Talvez por isso, pensando que os ditos árabes eram afinal quem lhe pagava o ordenado, isto a ter em conta as notícias dos “tablóides” que davam a Inglaterra como comprada pelos “sheiks” (e se calhar até pensava bem, sabe-se lá?…) a senhora, em vez de perder a paciência e nos mandar embora, abriu um bloco de notas sob a luz néon do balcão de atendimento e no papel em que anotava diária e indiscriminadamente o rol da mercearia, recados que os médicos lhe deixavam, números de telefone avulso e garatujas diversas, transcreveu de forma resumida o que constava do cardápio encadernado em folhas de couro sobre o novel bebé do meu amigo. Em seguida (cuidadosamente diga-se) rasgou a folha pelo picotado exibiu-a perante nós entre o indicador e o polegar e disse mais, ou menos triunfante
– Aqui está a certidão. “Are you happy now?”
– “Yes. Thank you very much” respondeu o pai requerente, que em voz baixa, como se a funcionária percebesse português me disse: – O consulado de certeza que não vai aceitar isto…. Achas que sim?
Eu achava que não, mas guardei de “Conrado o prudente silêncio”. Se calhar é capaz de não! mas afinal, é uma inglesa que escreve (lembro-me de ter pensado). Para Portugal a letra de qualquer inglês tem o mesmo valor de uma letra de crédito. A qualidade do papel em que escrevem seja o que for é o que menos interessa e para o consulado não deixará de ser, com certeza, igualmente assim.
Não sei ao pormenor o que aconteceu depois, mas certo é que o filho do meu amigo é hoje cidadão português e inglês. Com iguais direitos nos dois países e benefícios inerentes. Ou seja o livro base do hospital privado que o tinha dado como nascido ficou guardado nessa instituição (sublinho) privada com igual rigor como se o tivesse sido na “British Library”.
Esta história longa vem a propósito de uma conclusão bem mais curta que é esta: – Em Macau nas velhas tradições burocráticas dos “Filipes de Espanha” que inventaram o papel selado e nas dos funcionários estereotipados nos romances de Dostoyevsky (ou de Franz Kafka) certidões de nascimento, selos brancos e coisas que tais possuem valor absoluto independentemente de serem apócrifos, ou não. E nesse ponto damos plena razão à funcionária do hospital de Londres: “Então? se está escrito nos livros oficiais é porque é verdade!”. No Mundo anglo-saxónico os documentos originais (tal como nos arquivos da China) são preservados como se fossem sacro santos. Mas no mundo lusófono onde se encontram ao certo os documentos originais?
Em Macau, por exemplo, a verdade é que apesar das leis que obrigam a arquivar a história (nomeadamente a última) sobre a conservação de documentos datada de 1989 (que eu saiba) o que se verifica é que as certidões passadas muitas vezes se fundam sobre nada, ou muito pouco. Ou seja os documentos originais deixaram e continuam a deixar de existir, mais ou menos à vontade de cada serviço. Já não falo sequer dos chamados “papéis de Seda” (Sai Chi Key), por exemplo que não correspondem a qualquer registo de conservatória e muito menos se encontram no Arquivo Histórico. Mas nem sequer é preciso ir tão longe, nem vale a pena particularizar. Basta apenas perguntar aos serviços de Macau se sabem e cumprem nesta área particular a lei 7M3/89e que diz assim : Artigo 10.º(Conservação permanente)
1. Os documentos de conservação permanente não podem ser eliminados, devendo ser conservados nos serviços ou instituições a que pertencem sempre que tenham interesse para os mesmos. Ser incorporados no Arquivo Histórico, de acordo com as competências que lhe são conferidas (…) a título de arquivos definitivos. (…) Os serviços ou instituições a que os documentos pertencem podem proceder à sua transferência para suportes de cópia sempre que o julguem necessário.
Gostava de saber que serviços cumprem a lei no que toca à microfilmagem, ou passagem de arquivos para suporte informático? Gostava também de saber se algum serviço presta sequer atenção ao que a lei diz.
Mais, gostava de saber ainda se alguém classifica documentos (do ponto de vista histórico) de acordo com o que o Artigo 17.º que fala de Indestrutibilidade diz: –
“É proibida a destruição de arquivos privados classificados”. Alguém se preocupará na nossa Administração Pública em saber que arquivos privados classificados existem no seio dos seus departamentos (já nem falo dos exclusivamente privados, como os pertencentes a empresas públicas tais como a CEM. SAAM, CTM, TDM, Air Macau, e outras.
O Artigo 7.º (Selecção) diz que: – “A selecção é o processo que permite determinar os documentos que devem ser conservados ou que devem ser eliminados”. Pergunto-me de novo? Algum departamento público terá tido verdadeiramente em conta este artigo?
É minha convicção que o que existe com mais de dez anos e não constitui processo a “aguardar melhor prova” como se diz em linguagem judicial tem sido sem remissão deitado ao lixo. Não simplesmente por incúria, estou quase certo, mas muito mais provavelmente por falta de espaço para o efeito.
Neste ponto pergunto-me o que fazem os membros integrantes do Artigo 19.º que se chama Conselho Geral de Arquivos (CGA) que foi criado, como órgão consultivo do governo e ao qual alegadamente compete contribuir para a definição das políticas arquivísticas do Território, cabendo-lhe designadamente: – Propor os critérios de selecção, os prazos de conservação e o destino final da documentação. Dar parecer sobre todas as questões regulamentares e científicas respeitantes aos arquivos que lhe sejam submetidas ou sobre as quais entenda dever pronunciar-se.
Ao CGA compete igualmente reunir em sessão ordinária no princípio de cada semestre e, em sessão extraordinária, sempre que o presidente ou a maioria dos membros o requeira ou, extraordinariamente sempre que o Serviço de Administração e Função Pública o solicite.
Não tenho notícia de qualquer reunião ordinária, ou extraordinária deste CGA e provavelmente os membros que o integram (devido com certeza a muitos outros afazeres a que estão sujeitos) mal sabem que pertencem a tal comissão.
Para um historiador o caso é grave, mas para um funcionário público não deixa de o ser também, ou mais ainda. Principalmente quando por imperativos de serviço é necessário fazer um estudo sobre isto, ou aquilo.
Muitas vezes gastam-se milhões em novos estudos sobre os mesmos sujeitos que décadas antes foram dissecados, muitas vezes, até à exaustão. Como exemplo tenho presente o relatório, do governador Marques Esparteiro de 1956 que cita alguns planos que actualmente são encarados como novidades que o progresso impõe, mas de que ninguém se lembrou que já tinham sido iniciados (ou porventura mesmo concluídos) há mais de meio século. Igualmente não falo nos estudos técnicos, mais antigos ainda, subscritos pelas equipas do Almirante Lacerda, ou do engenheiro Adolfo Loureiro que directamente têm a ver, actualmente, com os aterros que estão a ser construídos nas imediações marítimas da Ponte da Amizade. Não! Peço apenas que cada serviço tenha consciência do que tem. Não deite fora o papel que eventualmente pensa que existe a mais nos seus armazéns. Se os não pode microfilmar, ou classificar, pelo menos entregue-o em bruto ao Arquivo Histórico.
Os ingleses (mas não só) da história por que comecei este artigo fazem-no há séculos numa tradição burocrática. Se quiser ir hoje ao hospital onde nasceu o filho do meu amigo, em Londres, há mais de 30 anos encontro certamente o seu registo. E se lá não estiver uma secretária atenciosa para além do inevitável “yes please” me dirá que o livro de nascimentos de 1973 foi enviado para tal, ou tal arquivo e com mais do que certeza absoluta o encontrarei onde me foi indicado.
No entanto hoje se tentar encontrar informação ainda que carimbado e numerada de um qualquer documento constante há apenas meia dúzia de anos num serviço qualquer, mas que não conste dos processos correntes passíveis de serem eventualmente consultados e que não contenha rara chancela de “classificado” o mais provável é que nem deles cinzas restem.
Felizmente que em Macau nesta a área a culpa nunca morreu solteira e como dizia Monsenhor Manuel Teixeira a responsabilidade foi e será sempre atribuída a uma e só delinquente e insidiosa “seita” que costuma dar pelo nome de “formiga branca”.
Pena é que sobre a questão nenhum poder constituídos tenha algum dia reivindicado competência para inquirir e nem “Provedoria de Justiça”, ou “Comissariado de Auditoria” se lembre de levantar a questão.