Capa do livro Macau Constitucional, IPOR-Livros do Oriente, Março de 1995.
Obscuridades e mistérios das ruelas da cidade
Quando cheguei a Macau há quase década e meia vim encontrar uma cidade sem grande orgulho, mas carregada de preconceito no que diz respeito à memória do passado recente. Embora a ditadura do Estado Novo se tivesse sumido havia já alguns anos e com ela a censura, pairava no ar um ambiente censório tacitamente aceite pela comunidade. Foi este ambiente que me despertou o interesse para conhecer com mais exactidão (por exemplo) os acontecimentos de 1966, o “Um, Dois, Três”, de que toda a gente falava em voz baixa sissiando factos de que nunca em Portugal (de onde tinha chegado havia pouco) tinha ouvido falar e que me eram relatados por uns e por outros com os exageros de quem conta um conto e lhe acrescenta um ponto. A ter em conta as conversas que ouvia, o caso teria sido uma hecatombe. No entanto, dos banhos de sangue que me referiam nem uma gota restava nas paredes ( muito menos nos jornais). Da fuga maciça da comunidade portuguesa de que alguns me falavam (embora soubesse depois que o êxodo se tinha ficado muito pelas intenções) restavam-me as estatísticas que indicavam uma população lusa sensivelmente igual, antes e depois do “Um, Dois, Três”. Estas contradições aguçaram-me o espírito curioso que mais curioso ficava ao consultar jornais e livros que se limitavam a reproduzir lacónicos comunicados oficiais do tempo e a tecer comentários que permaneciam longe de me informar sobre o que tinha sido na verdade tal convulsão de que toda a gente falava em voz baixa. Mas a minha surpresa aumentou, algum tempo depois, quando alguém, por interposta pessoa me forneceu documentos oficiais de um outro conflito, este passado nos idos de 1922, pedindo encarecidamente que não fosse revelado sob que pretexto fosse o nome que proporcionava ao jornalista tais documentos. Confesso ter ficado perplexo com tais precauções, ainda para mais relativas a factos passados há mais de meio século, mas mais espantado fiquei com as reacções que se seguiram à publicação de um artigo sobre o assunto; artigo que, diga-se, revelava toda a timidez de quem escreve tendo apenas como fonte um antigo Boletim Oficial do Governo e pouco mais. Mas a verdade é que a reportagem publicada nas páginas centrais de um semanário provocaram vivas reacções, sendo acusado até (pasme-se!)de “reavivar polémicas que podiam pôr em causa a estabilidade de Macau…” Confesso que ainda hoje não alcanço o sentido de tais críticas, mas confesso também que desde então compreendi que em Macau, havia assuntos sobre os quais se podia falar e escrever abertamente, outros não. Era assim que depois do “pontapé de saída” sobre os primórdios de Macau dado pelo professor Charles Boxer se pude encontrar nas bibliotecas uma profusão de artigos sobre os séculos XVI, XVII e XVIII, aparentemente escritos sem peias nem preconceitos de maior. À medida no entanto que caminhava pelo século XIX adiante, as lacunas omissões e distorções acentuavam-se até penetrar no século XX onde, se não se soubesse, diria que não existiu história. Assim, nas minhas procuras pude verificar que se muito se escrevera sobre o Ouvidor Miguel de Arriaga Brun da Silveira, quase nada tinha sido dito sobre os liberais. Teria, por conseguinte, permanecido na mais completa ignorância sobre os acontecimentos de 1820 se por acaso não tivesse tido acesso a uns artigos publicados pelo Pe. Videira Pires (os quais infelizmente, nunca mereceram publicação em livro) e ao ponto de vista inglês publicado por Austin Coats nas suas “Calçadas da História”.
Finalmente, tendo encontrado um original do “Historic Macau” de Montalto de Jesus como exemplar único existente no velho Arquivo Histórico, pensei suprir as lacunas com que me debatia. Mas era engano!… Lido o original em inglês voltava apenas a encontrar teses politicamente motivadas que se me levavam a simpatizar com o autor e com a sua desdita por ter tido o arrojo de propôr a entrega de Macau à Sociedade das Nações a fim de salvar a cidade do naufrágio que previa perante a estagnação da sua indústria e o alheamento de Lisboa, em nada esclarecia sobre o que de facto me interessava e que era apenas a história de Macau. Assim, para além de saber que o tráfico de cules e do ópio tinham constituido motivos que levaram a comunidade internacional a condenar Macau ninguém me informava com algum rigor sobre o que na verdade se tinha passado no século XIX. em tais casos. Mas se as lacunas e distorções classificavam o século das “luzes”, o caso agravava-se claramente no século XX. Aqui tudo se tornava mais nubloso e contraditório. Era assim que me via perante uma fotografia de garbosos militares posando para a posteridade entre as flores do jardim do Quartel da Flora em 1900. Como explicação surgia, em rodapé a legenda que informava tratar-se da companhia de voluntários de Macau, prontos para o que desse e viesse. No entanto, mistério dos mistérios!… ficava sem se saber o motivo que levara Macau a organizar voluntários para a sua defesa( vim a perceber mais tarde que a razão da mobilização se prendia com a aproximação das Portas do Cerco das labaredas revolucionárias dos “boxers”). Mas mais curioso ficava ( e ainda hoje não satisfiz tal curiosidade) ao entrevistar há alguns anos um antigo polícia que me relatava o massacre de 1914 de toda a população penal de um presídio de Coloane depois de uma alegada revolta, o transporte em batelões para uma vala comum do cemitério da Taipa das vítimas dos confrontos de 1922 e o assalto das milícias pró-japonesas ao vapor Sai Hon, em 1940 que se saldou pela morte de muitos polícias da esquadra do Ship Seng em pleno Porto Interior durante os anos de brasa da Guerra do Pacífico. De todas estas histórias não encontrei até hoje menções cabais, nem relatos completos. Muito menos descobri obras escritas que se tenham debruçado sobre tais assuntos. Mas, se no que diz respeito à história dos portugueses de Macau as lacunas despontam como cogumelos, não é menos certo que no que toca à influencia que o Território teve no desenrolar dos acontecimentos históricos contemporâneos na China menos se sabia ainda. Assim, sobre Sun Yat-sen encontrei apenas relatos que afirmavam ter o primeiro presidente da República da China ter exercido medicina em Macau, onde introduziu os conceitos ocidentais da ciência de Hipócrates” e nada mais. Sobre os clubes e associações secretas republicanas, existentes no Território, sobre o recrutamento de voluntários para a revolução, sobre o fornecimento de armas aos militantes que derrubaram a dinastia manchu, sobre as reuniões secretas no consultório de Sun Yat-sen na Rua das Estalagens nada constava. Mas, mais estupefacto fiquei ao saber que Lou Lim Iok, sobre o qual pouco mais sabia para além do facto de ter dado o nome a um jardim da cidade, ter sido também um dos militantes da república, e principal impulsionador das actividades clandestinas contra a dinastia manchu em Macau (razão pela qual foi incomodado várias vezes pela polícia). Com estupefacção soube também que as “Advertências Severas na Época Próspera”, obra que influenciou determinantemente o pensamento político de Sun Yat-sen e que Mao Tsé-tung leu nos primórdios da sua juventude foi escrito em Macau por um dos percursores do moderno nacionalismo chinês. Mas a verdade é que sobre tudo nada consta.
Criado a decorar que Geraldo Geraldes o Sem Pavor tinha sido um probo e fiel cristão que conquistara os castelos do Alentejo à moirama em nome da cristandade. Só muitos anos mais tarde vim a saber que a verdade é que este não só se tinha bandeado entre mouros e cristãos tantas vezes quantas lhe tinham permitido as andanças com o seu bando de marginais, pelas planuras alentejanas, como afinal teria acabado os seus dias num serralho do Atlas, rodeado de odaliscas e todos os prazeres do mundo se a sua propensão para a traição não o tivesse levado a escrever uma carta fatal ao rei português seu compatriota propondo-lhe conquistar por dentro o reino de Marrocos. Mas se a carta caíu nas mãos do califa e o levou-o ao cadafalso, o certo é que a sua acção acabou por figurar acima das traições tornando-o num dos pilares que fizeram a pátria portuguesa. É assim que, do mesmo modo, Macau foi feito de heróis e cobardes, traidores, trânsfugas e aventureiros, cidadãos impolutos e homens incompreendidos. Todos eles tiveram a sua quota parte na construção de uma cidade que não teria sobrevivido durante quatro séculos se a história contasse apenas com heróis. O que ainda hoje não se compreende é a razão pela qual alguns insistem em tentar apagar mazelas, quando a verdade é que sem estas os heroísmos não seriam possíveis.
Por tudo isto decidi debruçar-me sobre lacunas da história desta cidade contribuindo para trazer à luz alguns factos sobre os quais durante tantos anos nunca se escreveu.