Quem se lembra e quem não nas ruas de Macau. 11-05-11

Quem se lembra e quem não nas ruas de Macau

Macau  foi sempre um território constituído por uma esmagadora maioria de chineses de fé budista nas suas diversas formas. A população católica não vai além dos 25 a 30 mil fiéis num cômputo total de meio milhão de almas, ou seja, uma gota católica que se perde num mar ou, pelo menos, num grande lago budista e taoista. No entanto, qualquer estudioso do futuro que se debruçasse sobre a toponímia da cidade e das ilhas, sem se rodear das necessárias precauções, seria levado a pensar precisamente o contrário.

De facto, quanto a padres, bispos, e irmãs da caridade, não parece haver cidade que tanto tenha preservado os seus nomes como Macau.

Sobre o que fizeram, pouco se sabe em concreto, para além do facto de terem sido de facto padres, freiras, bispos e cónegos.

Tal é o caso do Padre António (António José da Costa) que para além de “administrar bem os dinheiros de vários fundos e legados que lhe tinham sido confiados”, nada mais terá feito de importante para merecer a posteridade. Mesmo assim teve direito a uma rua inteira.

Camões administrou também os dinheiros de vários fundos e legados, como Provedor dos Defuntos e Ausentes se é verdade que alguma vez ocupou tal posto? Eduardo Ribeiro, por exemplo, assevera que sim em dois livros e artigos impressos em revistas de grande valor cultural no mundo lusófono dados há não muito tempo à estampa. Mas seria profundamente duvidoso que o seu eventual zelo contabilístico lhe concedesse direito ao jardim que ostenta o seu nome, se não possuísse os outros dotes pelos quais ficou imperecível na história. E assim ficou para a tradição portuguesa o “Jardim de Camões” e para a chinesa o “Jardim das Pombas Brancas (Pack Hap Chau).

Quanto ao padre Vasconcelos (António Maria Augusto de Vasconcelos), os créditos são ainda menores, do que os do seu confrade António, constando apenas ter “pregado gratuitamente a oração fúnebre de D. Pedro V.

Cinquenta anos antes, o frade António de S. Gonçalo de Amarante pregou a oração fúnebre de D. João VI igualmente gratuita. Mas, para além de não lhe terem sequer concedido um beco ainda o levaram preso a ferros para Goa. No entanto este frade (prior dos Dominicanos) foi o autor do primeiro jornal português do Extremo Oriente (“A Abelha da China”), facto que por si só teria merecido justo reconhecimento se não se trata-se de um liberal “contaminado” pelas ideias subversivas da Revolução Francesa, ou se em vez de ter sido superior da ordem espanhola fosse reitor dos franciscanos, confraria mais adequada ao nacionalismo luso e menos eivada de fumos castelhanos, ou então se fosse jesuíta. Mas, certo é que Vasconcelos teve direito, a uma rampa, enquanto o frade liberal (e provavelmente “pedreiro-livre”), Frei António de S. Gonçalo, perdeu-se na história apenas com o epíteto de “malhado” sem rua nem beco, nem pátio sequer.

No que se refere ao jesuíta Roliz (António José Gonçalves Roliz), já se conhece mais alguma coisa. Formado pelo seminário local (S. José), partiu para a Europa a fim de repetir os cursos de filosofia e teologia, voltando à Ásia para leccionar em Cochim (Índia), missionando posteriormente na cidade chinesa de Shiu-Hing, antes de terminar os seus dias em Macau como perfeito, professor e director espiritual do seminário, promovendo aqui o culto de Nª. Sª. de Fátima. Teve por isso, direito a uma rua.

No que se refere ao padre Narciso (Narciso Firmiano) nada há que justifique os gastos de uma placa ainda que em simples azulejo, nem a sobrevivência da memória, tendo em conta que os autos biográficos oficiais referem apenas ter sido criado de um francês chamado Molinau que era piloto de uma chalupa pertencente ao rico comerciante António Correia de Liger e, mais nada. Sendo assim, não se encontra explicação capaz para a sua perpetuação, já que nem Molinau nem Liger (Liger talvez merecesse, mas não cabe aqui fazer a sua história) figuram em parte alguma como particularmente lembrados por pensamentos, palavras, ou obras como diria a Igreja.

O facto de ter falecido na dignidade de cónego não consegue, mesmo assim, resolver o enigma, tendo em, conta que na história local, os cónegos foram pelo menos mais de uma centena ao longo da história de Macau e pouco se sabe sobre o que tenham feito de relevante fora de portas do Paço Episcopal.

O mesmo se pode dizer do padre Soares (Luís Soares) que também não possui biografia própria. Segundo Mons. Manuel Teixeira, este sacerdote, era “filho de Francisco Xavier Placé Soares e de Ângela Vicência Osório Soares, tendo um irmão, Matias da Luz Soares que casou com Júlia de Vasconcelos, filha de António José Vasconcelos, natural de S. Miguel, nos Açores e de Júlia Maria Cândida de Castro…” Convenhamos que, se trata de um currículo manifestamente insuficiente para lhe conceder quaisquer direitos, mesmo que a uma travessa. Quem teria sido este padre do qual consta apenas a biografia dos seus parentes?

No caso de Madre Terezina (Maria Teresa Lucian), já a posteridade se justifica plenamente. Desde que fundou o convento das irmãs Canossianas no Território, distinguiu-se imediatamente, por ocasião do surto de “cólera morbus” que afectou Macau em 1888, auxiliando os doentes e também o Dr. Gomes da Silva, cirurgião-geral que se “matou” a trabalhar lutando contra as infecções e o maioritário preconceito que na cidade rejeitava a medicina ocidental.

Vencida a crise, Madre Terezina fundou e desenvolveu colégios, voltando a distinguir-se na luta contra novo surto de peste dez anos depois (1898). Entre crises, ergueu asilos e estendeu a acção das Canossianas a Singapura e a Malaca, ganhando assim com mérito os créditos necessários a fim de poder figurar na panóplia dos heróis e heroínas locais com todo o valor. Acho que, neste caso deveria ter direito a, pelo menos, um bonito jardim, ou alameda com árvores frondosas e crianças a brincar, mas enfim… a história às vezes é ingrata e a Madre Terezina ficou-se por uma rua traseira o que é pena, em minha opinião!…

No que toca a prelados, muitos ficaram esquecidos nos recônditos dos séculos, outros não. Da justiça, ou injustiça das homenagens toponímicas não nos compete julgar, mas apenas assinalar que, por exemplo, D. Melchior Carneiro, esse bispo esclarecido do século XVI (O mesmo que para além de construir a primeira misericórdia e o primeiro hospital e lançar as bases da organização política da cidade consubstanciadas no antigo Leal Senado, actual “IACM”, apenas teve direito a nome numa discreta rua das traseiras das ruínas de S. Paulo, num sítio onde, poucos peões frequentam a passagem, a não ser os moradores e os que vão à missa, ao sábado, ou Domingo à Igreja de Santo António.

Mais de trezentos anos depois, já que o cadastro de 1869 não o refere tendo sido perpetuado apenas no censo cadastral de 1925, D. Melchior, ainda que permanecendo na memória das conservatórias, da “Santa Casa da Misericórdia” e do “Arquivo Histórico”, ali ficou lembrado, mas foi praticamente eximido da toponímia. Desgraçado, jesuíta a quem Macau deve os alicerces da sua existência política de mais de quatro séculos mas, o qual a posteridade avara negligenciou negando-lhe a honra merecida de uma avenida, ou pelo menos de uma rua principal, ou de uma grande praça.

Mas, ainda no que se refere a bispos, as injustiças são evidentes. De todos os prelados de Macau (e foram alguns os recordados) ficaram apenas o bispo Enes, um franciscano doutorado por Coimbra, par do reino e comendador da Conceição, que dirigiu a diocese local entre 1877 e 1883, sendo depois transferido para Bragança e também o Bispo Medeiros. O primeiro foi mesmo considerado um dos maiores prelados da diocese (ainda que não se saiba lá muito bem porquê). Ambos conquistaram duas ruas.

D. João Paulino, fundador do Boletim Eclesiástico da Diocese, perpetuou-se, por seu turno, numa estrada ainda que deveras íngreme.

D. Jerónimo José da Mata, fundador da ideia do iberismo, talvez por isso, apesar do que fez e foi muito não só em Macau, mas também em todo o sudeste asiático, pelo catolicismo, esfumou-se nas brumas do tempo sem direito a memória a azul e branco em qualquer placa de azulejo que eu saiba, ou tenha visto (se calhar existe, mas não reparei nas minhas deambulações pela cidade).

Esquecido ficou também, em parte, o maior de todos os bispos de Macau depois de Melchior Carneiro, que foi D. José da Costa Nunes.

Esclarecida personalidade, D. José, para além de ter dinamizado a vida religiosa, social e cultural de Macau nas primeiras décadas do século XX atingiu as mais altas honras da Santa Sé. Seria o sucessor de Pedro Hispano (Papa João XXI  – 1276-77 – o único Papa português) se a morte não o tivesse levado prematuramente. No entanto, esta figura ímpar, de Portugal sobre a qual também há uma biografia por fazer não teve direito a quase nada, figurando apenas no pórtico de um infantário que esteve em risco de ser deitado abaixo há poucos anos por “ignorância dos povos” como diria o poeta e prevalência do camartelo do progresso e ganância da construção civil.

Que razões misteriosas levaram a toponímia macaense a esquecê-lo assim? Talvez um dia se saiba, embora antes de morrer o próprio bispo tenha queimado, todo o seu acervo de documentos pessoais. Que segredos pretenderia esconder este homem superior, magnânimo e esclarecido? Possivelmente terá apenas querido preservar a sua memória impoluta da incompreensão dos vindouros.

Passem as injustiças conclui-se todavia que a toponímia macaense regurgita de bispos, padres e freiras. No entanto, apesar da antiguidade da religião budista, do facto do templo da Barra ser anterior à chegada dos portugueses e de os pagodes se contarem por mais de uma centena na cidade e ilhas a toponímia macaense soberanamente decidiu ignorar esta fatia maioritária.

É assim que, apesar de existir o Largo do Pagode da Barra, ou a recentíssima rua “do Kun Iam Tung, não existe em Macau uma única via, nem um esconso beco que tenha merecido o nome de um monge budista de renome histórico. Em quatrocentos anos, não é crível que pelo menos um ou dois não tenham merecido ficar perpetuados.

Chega-me notícia de que agora já constam alguns nomes dos seguidores de Buda na toponímia de Macau. Ainda que embora poucos.

Ainda bem que assim é, mas falta divulgar o que fizeram tanto em chinês como em português

O 25 de Abril e Macau. O Fim de uma era antiga. 03-05-11

À margem das diligências oficiais que referi a semana passada, um amplo grupo de democratas reunia-se, entretanto, no restaurante “Fat Siu Lau”, à rua da Felicidade redigindo um telegrama emocionado por intermédio do “Jornal Republica” (um dos símbolos da luta republicana contra Salazar e Caetano), em jeito de carta aberta a todos os portugueses. Nele saudavam “o patriótico movimento de 25 de Abril que pôs fim ao “período fascista”, celebrando também o facto de levarem a cabo a primeira reunião política livre dos últimos 40 anos em Macau.

Ao fim da noite, os 38 subscritores da missiva abandonavam por entre vivas e aclamações o restaurante de regresso a casa sem receio de terem cometido qualquer acto criminoso previsto e punido pelo “Código Penal”, nem serem presos pelos subordinados do agente Noronha que sob a cobertura da Polícia da PS na Judiciária dirigia de facto a “PIDE-DGS” em Macau comandando de facto, ainda que oficiosamente, os serviços de informações da PSP.

Mas, a reunião do “Fat Siu Lau”, apenas culminou um dia de conquistas democráticas.

Nessa mesma tarde, o chefe de gabinete do Governador (Lajes Ribeiro), reunira no Palácio da Praia Grande os directores e representantes dos jornais, comunicando-lhes oficialmente o fim da censura.

A partir desse momento os periódicos portugueses poderiam escrever livremente o que quisessem. Os jornais chineses não foram convocados pelo simples facto de nunca terem sido submetidos à censura depois da convulsão de 1966-67 que ficou conhecida pelo número “1,2,3”.

Lajes Ribeiro, fazia-o com agrado e genuína convicção tanto quanto posso avaliar das inúmeras conversas que com esse oficial (actualmente general reformado) pude manter bem como com pessoas de vários quadrantes políticos que com ele conviveram em diversas épocas.

Depois de numa primeira vez se ter recusado a integrar como vogal a comissão de censura, ao ser para o efeito convidado quando era ainda oficial da polícia, acabaria por se tornar presidente da mesma comissão alguns anos mais tarde por inerência do cargo, facto de que não se apercebera antes de aceitar o convite de Nobre de Carvalho para ser seu “Chefe de Gabinete”. Nem tinha que se aperceber, digo eu, tendo em conta que se vivia então num regime totalitário onde qualquer lugar, ou posto nas forças armadas, ou na função pública implicava aceitar implicitamente tudo quanto não só a lei ditava como a sua regulamentação obrigava.

O discurso de Lajes Ribeiro ainda que sincero, não se traduziria em imediata liberdade já que meses depois o velho jornal “Notícias de Macau” acabaria por ser sancionado com uma coima de tal ordem por “excesso de liberdade de imprensa que teve que encerrar portas.

Na sequência da fundação do “CDM”, também as forças conservadoras locais se sentiram na necessidade de se agruparem fundando a Associação para a “Defesa dos Interesses de Macau” “ADIM”, liderada pelo antigo procurador à Câmara Corporativa Carlos Assumpção forte personalidade que para além da comunidade portuguesa estendia a sua influência à sobrepujante comunidade chinesa.

Ao contrário do “CDM”, não era a democratização da sociedade o principal objectivo da “ADIM”, mas sim a criação de um grupo de pressão capaz de lutar contra os receios de curto prazo de alguns sectores da população de que o processo de descolonização em curso pudesse ser de alguma forma apressadamente aplicado em Macau.

Com a formação da “ADIM”, ainda que exponencialmente mais conservadora do que o “CDM” acentuava-se a pressão no sentido da transformação das estruturas coloniais ancilosadas que Nobre de Carvalho, embora dizendo oficialmente aderir aos princípios da revolução dizia simultaneamente que “as alterações que podiam ser implementadas” não estava em condições de as fazer ele próprio.

Entretanto nos quartéis registava-se grande turbulência, reflectindo as mudanças de conceitos e de objectivos das forças armadas que punham termo à guerra do “Ultramar” e ocupavam vitoriosamente o poder político. Nesse contexto de indefinição o chefe de estado-maior (Rocha Viera) decidiu eximir-se a ser árbitro na situação local. Pediu licença militar (que foi aceite) e partiu para Lisboa a fim de verificar “in loco” quais era os novos rumos dos ventos da política nacional. Rocha Vieira, curiosamente, mais tarde acabaria por regressar a Macau afirmando-se delegado doMFA(Movimento das Forças Armadas).

Nessa altura no Território o comandante Salgado, Capitão dos Portos, dizia igualmente que o era antes dele e provavelmente teria razão. Porém à falta de documentos credíveis, vá lá saber-se quem era o verdadeiro delegado do “MFA” em Macau?…

O que se sabe ao certo é que o comandante Salgado acabaria preso e recambiado para Portugal, enquanto Rocha Vieira regressava como secretário adjunto para as Obras Públicas do novo governador Garcia Leandro. Mas, na verdade as suas funções excediam largamente as Obras Públicas, já que na prática se perfilava como comandante operacional da pacificação do Território e da sua guarnição que se tinha esquerdizado em demasia conforme o próprio Rocha Vieira afirma.

Independentemente de quem comandava oficial, ou oficiosamente o “MFA” em Macau a agitação social mantinha-se dentro de limites aceitáveis face aos novos tempos revolucionários que tinham surgido de supetão. Mas isto é o depois da história.

Antes Nobre de Carvalho aguardava indicações claras de Lisboa sobre qual a política a seguir e fazia saber (no limiar da sua própria reforma) que fosse qual fosse a evolução dos acontecimentos deixaria o território no final do mandato para que tinha sido nomeado, ou seja Outubro de 1974.

Embora beneficiando ainda da simpatia de grande parte da população, simpatia que lhe advinha dos tempos conturbados do “1,2,3”, Nobre de Carvalho começava a tornar-se alvo cada vez mais exposto:-

“Grande parte da população não aceitava a sua continuação, sofrendo por isso uma grande contestação durante muitos meses” recorda o general Garcia Leandro, que seria juntamente com o major Rebelo Gonçalves o primeiro a deslocar-se a Macau como enviado oficial do novo regime.

O próprio Nobre de Carvalho, por seu turno, ia mais longe preferindo usar o termo “revolução” a contestação: –

“Foi uma outra revolução, que houve, desta vez dentro da população portuguesa (chinesa não!) macaenses e outros europeus (o que quereria dizer com outros europeus?). Mas foi uma minoria que estou convencido – muitos já morreram – que no fundo se devem ter arrependido do que fizeram porque foi uma vergonha essa actuação”. Apesar destas amargas palavras, o velho general no entanto não chegaria a conhecer os verdadeiros tempos de agitação que se seguiriam em Macau após a sua resignação do cargo.

Macau logo a seguir ao 25 de Abril de 1974 -04-26-11

Macau, foi desde sempre vista de Lisboa muito mais como uma “pérola exótica” de diletantes e intelectuais decorrente dos escritos de poetas e prosadores, nacionais e estrangeiros, que por aqui passavam do que uma colónia credível, verdadeiramente importante, ou pragmaticamente rentável para o Estado.

Os jornalistas das mais diversas nacionalidades acrescentavam pontos ao tema que romancistas e realizadores de cinema desenvolviam sobre este diminuto cantinho peninsular do Sul da China.

O filme “Macau o Inferno do Jogo” permanece como estereótipo protagonizado por Robert Mitchum e Jane Russel sobre uma cidade que, ao mesmo tempo era e não era, nos anos 50 e seguintes.

Na literatura o estereótipo permanece no que escreveu, por exemplo, o grande novelista republicano espanhol W. Fernandez Flores sobre a Rua da Felicidade, retracto exacto de um bairro dos anos 30 (século XX) que igualmente era e já não era. Os senhores de “chapéus brancos de abas largas”, o canto morno das “pei-pai-chai” que tocavam cítaras e alaúdes, na pequena viela eram muito mais produto de uma imaginação ocidental fértil perante o exótico oriental do que realidade quotidiana que pouco romance continha. Aliás essa imagem de W. Fernandez Flores é um retrato que já se perdeu da memória da cidade há décadas e décadas tal como a própria viela.

Quanto ao “Inferno do Jogo” nem tanto. Um pouco mais realista, já que americano ainda hoje contém em si traços de alguma verdade hodierna ainda que excessivamente ficcionada.

Sendo assim, Macau com os seus 16 quilómetros quadrados de perímetro (actualmente são 28.6 Km2 e mais se aguardam) perfilava-se negligenciável na géo-estratégia de Portugal. Porém, nos domínios da cultura o seu estatuto era outro e de quase primeiro plano. Mas a história e a cultura sempre foram disciplinas de ordem negligenciável perante dividendos financeiros e ganhos eleitorais, que só têm em conta estatísticas e grandes números.

Em Macau a demografia era escassa não indo além das duzentas mil almas que habitavam a cidade e as ilhas nos idos da década de 70 do século XX. Além disso nesses tempos para a ditadura do “Estado Novo” os votos nada contavam já que a vitória estava sempre assegurada pelo partido único. Primeiro a “União nacional” de Salazar, depois a “Acção Nacional Popular” de Marcelo Caetano. Por isso Macau permanecia como sempre, aliás, última prioridade do antigo “Império Português das Descobertas” quanto mais não fosse pela erosão da História!

Não é portanto de admirar que no computo dos problemas gerados pela descolonização de regiões tão vastas, como Angola e Moçambique, Macau, mais as suas pequenas ilhas anexas (Taipa e Coloane que na altura nem para Macau contavam coisa que se visse, já que nas ilhas a população era demasiadamente diminuta para mal conter um freguesia e meia), permanecesse durante algum tempo na gaveta dos assuntos pendentes da “Revolução de Abril”, protelando-se até à eventual chegada de representantes oficiais do Governo de Lisboa que trouxessem indicações claras sobre o que iria acontecer, facto que parece ter contribuído para fazer aumentar o “stress” local (Stress: – vocábulo novo com que a psiquiatria moderna elidiu o nervoso e a histeria antigas).

Isto tanto mais, que a “República Popular da China” (RPC), do mesmo modo, parecia não ter pressa em dar qualquer indicação das suas intenções sobre o futuro do território português (se não o tinha dado nos trezentos, ou quatrocentos anos anteriores que urgência teria em faze-lo agora?…). Mas nesse tempo a urgência de um sinal claro sentia-se profundamente não só entre portugueses, mas com igual intensidade entre chineses também.

Esse vazio de respostas a interrogações prementes levou o governador Nobre de Carvalho) a enviar a Lisboa o seu chefe de Gabinete (Lajes Ribeiro) que manteve um encontro com o “Ministro da Coordenação Interterritorial” (Almeida Santos), e trouxe boas notícias: – ” Vim de lá com uma certa tranquilidade porque senti que o Ministério estava a encarar o Governo de Macau com muito realismo, com muito pragmatismo e foi quando ele (Almeida Santos) anunciou que viria a Timor e a Macau“.

Mas a boa impressão trazida por Lajes Ribeiro, não parecia capaz de apaziguar receios. Por isso, quando é finalmente anunciada oficialmente a deslocação de Almeida Santos para tratar da descolonização extremo-oriental, a notícia é recebida com certo cepticismo, para não dizer, mesmo, pânico principalmente entre a população chinesa já que se registaram nessa altura corridas aos bancos e a toda poderosa “Associação Comercial” pareceu pela primeira vez titubeante.

Negócios eminentes e apalavrados foram desfeitos de um momento para o outro; projectos de investimento de grande envergadura congelados pelos seus promotores e até pequenos construtores civis deixaram a erecção de edifícios nas avenidas Novas (Horta e Costa e Ouvidor Arriaga) e também, na frontaria principal da Praia Grande a meio esperando que a situação se clarificasse.

A Pataca sem o aval do “Império Português” que patentemente se esboroava com a revolução poderia passar a valer zero e por isso o povo reagiu acorrendo às caixas bancárias para levantar as suas economias antes que fosse tarde.

O que é que iria dizer Almeida Santos quando chegasse? Ninguém sabia!…

Tentando desdramatizar a situação, o Governo Português esclarece que o termo “descolonização” contido no dossier do “Ministério da Coordenação Inter-territorial” se referia exclusivamente a Timor. Os esclarecimentos porém não produziram efeitos, nem imediatos nem seguros. Garcia Leandro, que acompanharia o Ministro no seu périplo oriental, refere mesmo ter encontrado em Macau “um grande receio. Era como se para a população local o 25 de Abril tivesse aberto uma grande porta para lá da qual era a mais completa escuridão“.

Garcia Leandro, oficial ligado ao “Movimento das Forças Armadas” (MFA) e desde o início vocacionado para os assuntos de Macau e Timor, manteve-se no Território algum tempo auscultando a população sobre o perfil do novo governador que deveria substituir Nobre de Carvalho sobre o qual,  Almeida Santos perante o “Teatro Diocesano” repleto, teceria “rasgados” elogios que terão calado fundo nalguns corações, mas não nos da maioria.

Pouco depois, Garcia Leandro regressaria a Portugal, apenas para voltar, mais tarde e dessa vez graduado em major a fim de ocupar o assento vago do Palácio da Praia Grande com a partida do velho general retirado.

Tanto para os democratas como para os conservadores, as notícias da eclosão do 25 de Abril de 1974 causaram generalizada satisfação.

Para os primeiros abria-se uma nova era de liberdade. Para os outros a possibilidade de conseguir a tão almejada autonomia ansiada desde os idos da revolução de 1822. No entanto, passada a euforia inicial, uma parte da população, incluindo a comunidade chinesa temeu (como disse antes) pelo futuro.

A descolonização tomava prioridade em todas as agendas do Portugal político e revolucionário e nenhuma indicação chegava que permitisse claramente depreender que Macau seria tratada de maneira diferente de Angola, Moçambique, Guiné, Timor, Cabo Verde, ou S. Tomé e Príncipe.

É neste contexto de reserva generalizada que o “Ministro da Coordenação Interterritorial” do primeiro Governo Provisório (Almeida Santos) efectua a referida deslocação ao Oriente.

Uma deslocação vista com ansiedade por Macau (como se disse antes), mas principalmente pela vizinha colónia inglesa de Hong Kong, onde o Governador Lord Crawford Murray MacLehose (preocupado) enviou insistentes telegramas a Almeida Santos para se encontrar com ele antes de embarcar no “hidrofoyl” (“hidrofoyls” eram os navios rápidos que antecederam os “jetfoils” ainda mais rápidos dos dias de hoje, que faziam a carreira entre Macau e Hong Kong e vice-versa) para Macau.

Almeida Santos encontrou-se de facto com o governador britânico antes de chegar a Macau e procurou descansa-lo, ainda que não se saiba se inteiramente o conseguiu.

Foi em razão dos receios crescentes que o “Foreign Office” fazia sentir que Almeida Santos, depois de ter estado em Timor entendeu ser indispensável, passar por Macau, ainda que aqui pensasse ir tratar de um problema menor e mais fácil de resolver do que o da Insulíndia. Mas não foi assim. Quando chegou constatou que as informações que possuía não seriam exactamente as que esperava: –

“Quando cheguei havia uma grande ansiedade de facto. A pataca tinha baixado de cotação e as pessoas estavam preocupadas. Qual vai ser o futuro de Macau? E eu pude fazer uma comunicação pública num teatro da cidade em que afirmei: Macau é uma jóia rara. É um caso especial, para nós não é uma colónia. Para Macau não se põe o problema de nenhum processo de descolonização. Isso aquietou os ânimos.

No dia seguinte a cidade era outra e eu fiquei muito feliz por ter contribuído para desfazer essa ansiedade”.

Nesse intróito (dramático, pode dizer-se), Nobre de Carvalho teria ainda ensejo de concluir da melhor maneira o seu atribulado mandato inaugurando em 5 de Outubro de 1974 (simbólico acto que coincidiu com a comemoração dos 64 anos da implantação da República Portuguesa) a nova e primeira ponte entre Macau e a Taipa que receberia o seu nome.

Cinco dias depois partia para Lisboa convencido de que Macau não viria a beneficiar muito com o 25 de Abril.

– “Viria a beneficiar sim, de uma maior representatividade dada à população nos órgãos do governo próprio do Território e nas autarquias. Isso impunha-se e principalmente aquilo que eu nunca tive, que era ter maior liberdade de acção, não estar piado como sempre estive em consequência das leis que então estavam em vigor, pelo Terreiro do Paço, digamos, por Lisboa”.

Uma opinião subscrita também por Garcia Leandro que sublinha: – “A primeira impressão com que fiquei foi que o território teria grandes possibilidades de desenvolvimento, estava numa área económica muito importante, mas devido ao sistema político que existia então se encontrava atrofiado“.

Depois da partida de Nobre de Carvalho, o inevitável processo de adaptação às novas condições levantou ainda mais a agitação. Uma agitação centrada quase exclusivamente na comunidade portuguesa civil e militar. Quanto à liderança da comunidade chinesa perante a “Revolução Cultural” rampante tinha muitas outras coisas políticas, financeiras e económicas, com que se preocupar.

Nos meses seguintes acentuaram-se clivagens e divergências, a polémica redobrou nos jornais e os comícios inflamaram-se mais ainda, culminando num período que registou algumas semelhanças, ainda que de escala bem diferente, com o que ficou conhecido em Portugal por “Verão Quente de 1975”.

Todavia, apesar das divergências de pontos de vista é hoje unânime que mais do que qualquer outro anseio, o 25 de Abril trouxe para Macau, acima de tudo, uma autonomia que tardava pelo menos desde que os liberais de 1822 tinham fracassado na sua tentativa de se eximir à obediência de Goa e governarem-se a si próprios quase duzentos anos antes.

A história repete-se e irá com certeza repetir-se. É pena que as gerações por vezes teimem em esquecer-se da história.

Macau 25 de Abril de 1974. Uma perspectiva e alguns testemunhos. 04-19-11

Em 1966 Macau tinha vivido o momento das maiores incertezas. A Revolução Cultural da China, provocara danos incalculáveis que se estenderam ao Território português onde os guardas do socialismo, operários e estudantes, já que em Macau não havia camponeses, a não ser os poucos que cultivavam hortas nas traseiras de suas casa nas ilhas da Taipa e Coloane e nos terrenos vagos do Bairro do Hipódromo (actualmente regurgitante de edifícios). Mas esses não se podiam classificar tecnicamente como tais e por lá ficaram sossegados nas suas hortas a regar hortaliças.

Os outros empunhando o “livrinho vermelho”  tinham tido a ousadia de invadir o palácio da Praia Grande, derrubando as vacilantes barragens policiais e obrigando o recém chegado governador Nobre de Carvalho, ignorante do que se passava  a ouvir  em indecifrável cantonense as palavras revolucionárias do “Livro Vermelho” de Mao Tsé-tung” recitadas pelos pequenos estudantes adolescentes da “Escola Hou Kong”, entre outras, no átrio do seu próprio gabinete, facto que para além de ofender a ordem pública, perturbava o normal despacho da burocracia do Estado que  teimava  em continuar apesar do “cataclismo” em curso.

Nobre de Carvalho, apesar de ter sido avisado do que se passava apenas à chegada a Hong Kong pelo seu homólogo britânico Sir David Clive Crosbie Trench, saiu-se bem  do caos político  oriental conseguindo, ao contrário de Vassalo e Silva (em Goa), salvar Macau de uma eventual (ainda que muitos considerem, ainda hoje, duvidosa) invasão e retomar o ritmo de crescimento económico que se prefigurava antes, mas que tinha sido brutalmente interrompido quando ainda mal dava os primeiros passos pela dita “Revolução Cultural”.

-“Nobre de Carvalho teve muito azar. Quando chegou a Macau apanhou com o “1, 2, 3”, sobre o qual sabia talvez menos do que eu e no fim do mandato apanhou com o 25 de Abril”, recorda o então director da “Rádio Macau” (“RM”), Alberto Alecrim um veterano da queda de Goa, onde conheceu o cativeiro como prisioneiro de guerra.

Mas se o Governador nada sabia da “Revolução Cultural” que conheceria do que se preparava em vésperas de 25 de Abril de 1974 em Portugal? Provavelmente saberia o mesmo, ou seja nada mais do que rumores sem importância pensaria o general?

Quando muito, o seu chefe de gabinete, Lajes Ribeiro, seria o mais avisado para os efeitos do que uma guerra colonial, que se prolongava há anos consecutivos, provocava nas fileiras militares, cada vez mais desmoralizadas. Isto a avaliar pelos contactos que Lajes Ribeiro tinha mantido pouco antes na Metrópole durante um dos seus cursos de promoção com oficiais que participariam activamente na revolta de Abril, nomeadamente com o major Ramalho Eanes (seu contemporâneo). A mobilização para Macau (e regresso já que antes tinha aqui cumprido comissão de serviço anterior) afastou-o, porém, dos labirintos da conspiração impedindo-o de seguir os acontecimentos que se desenvolviam em movimento acelerado na “Metrópole” nos anos de estertor do “Estado Novo”.

Quanto à generalidade da população de Macau mantinha-se alheia já que as notícias de Portugal chegavam previamente censuradas de Lisboa aos jornais e à “RM” e as notícias trazidas pelas cartas do correio, ou por um ou outro qualquer novo oficial, ou funcionário público, que chegava não eram nem suficientemente claras nem consistentes para serem, consideradas como mais do que anedotas, boatos e opiniões pessoais.

Tudo isso provocava, naturalmente, discussão (em voz baixa, é claro) no “Clube Militar”, “Restaurante Solmar” (centro da “má-língua” e dos diz-se que se diz), algumas conversas no “Clube de Macau” (local onde tudo interessava menos isso) e nas tertúlias em casa de cada uma.

O ”Universo” local não passava disso mesmo; – Tertúlia conspirativa eventualmente sem consequências de maior que se manifestava sem consequências há décadas e décadas. Dizer mal do Governador e da República era, pode dizer-se, desde sempre uma exercício cultural interessante mas politicamente inconsequente. Macau estava muito longe das “tricas” políticas do outro lado do Mundo, ou seja de Lisboa. O que interessava de facto eram os desenvolvimentos da China.

A tentativa fracassada de sublevação do regimento de infantaria 5 das Caldas da Rainha de 16 de Março de 1974, também não esclareceu ninguém já que, mais uma vez, os três jornais de Macau (“Gazeta”, “Notícias” e “Clarim”) recebiam apenas para publicação inócuos telexes do regime através da “Agência ANI” (antecessora da “ANOP” e da actual “Lusa”) informando que “a situação estava calma em todo o país” e nada mais.

Esses telegramas eram tão parcos que nem sequer referiam que tinha havido uma sublevação militar ainda que frustrada na Metrópole (?…). Na prática não diziam nada a não ser que Portugal do Minho a Timor continuava a vogar no “melhor dos mundos”…

Por seu turno o serviço mundial da “BBC” e amplamente escutado em Macau pouco mais acrescentava.

No entanto: – “que o ambiente andava tenso em Portugal todos sabíamos, mas ninguém esperava uma acção tão súbita das forças militares. E que a insatisfação no país e a guerra em África tinham de ter um desfecho, também se sabia”, escreve nas suas memórias” Graciete Batalha, professora do ensino secundário interventora na vida social e política local, membro do então chamado “Conselho Legislativo” e acérrima defensa do princípios mais conservadores do “Estado Novo”.

Apesar da sensação de que algo ia mal na Metrópole certo é que esse sentimento partilhado esteve longe de constituir óbice à reunião solene da sessão legislativa (no rés-do-chão do Palácio da Praia Grande) para ouvir um longo discurso do governador Nobre de Carvalho, no qual figuravam as grandes linhas de acção governativa para o ano seguinte, com destaque para os benefícios evidentes que a eminente conclusão da ponte entre Macau e a Taipa trariam ao Território (e que de facto truxeram, ainda que fosse pouco e parco, mesmo nesse tempo). Principalmente numa altura em que Macau se debatia com a escassez de abastecimento de água e electricidade por falta de meios de pagamento).

Terminado o discurso foi a vez do deputado Henrique de Senna Fernandes, agradecer protocolarmente a presença e os esclarecimentos do Governador. Depois disso e também de acordo com os costumes, o “Conselho” elaborou o habitual telegrama de apoio ao regime e à sua política ultramarina (que elaborava todos os anos numa burocracia antiga).

– “Fui até eu que redigi o telegrama, que seguiu para Lisboa e que chegou à capital precisamente no dia 25 de Abril”, lembra Henrique de Senna Fernandes, que acrescenta:- ” Fi-lo com convicção, porque nós ultramarinos gozávamos de uma situação privilegiada no antigo regime. Sentíamo-nos garantidos com essa política”.

Mais de 20 anos depois, Senna Fernandes (entrevista que me concedeu para um documentário sobre a passagem dos 15 anos do 25 de Abril em Macau para a “TDM”) recordou com humor a situação então vivida, ainda que na altura a chegada das notícias da revolução estivessem longe de lhe ser agradáveis.

– “Cerca das três e tal, da tarde do dia 25 de Abril fui para o meu escritório, quando recebo um telefonema do Pedrinho Lobo que me diz: – Tu estas “lixado”! Acabaste de fazer o discurso de apoio ao regime e o regime caiu! Exclamou o Pedrinho. Cinco minutos depois telefona-me meu pai a dizer também que Marcelo Caetano e Américo Tomas tinham ido ao ar. Claro que já não trabalhei mais nesse dia. Eram notícias impossíveis para nós que tínhamos sido criados no regime. Como era possível?”.

Durante todo esse dia, Alberto Alecrim continuou a manter no ar a programação normal da “RM” sem que os telexes das agências “Reuters” e “France Press”, recentemente instalados nos estúdios da “emissora” mostrassem nada que merecesse particular destaque para inserir no boletim noticioso seguinte, a não ser um desastre de Comboio na Índia, uns mortos em combate na guerra do ditador Marcos das Filipinas contra os comunistas em Manila e arredores e os últimos avanços do Vietname recém unificado (em Janeiro do ano anterior) sobre os países vizinhos. De resto mais nada de relevante para o mundo e muito menos para Macau.

Só à noite Alecrim soube da revolução e não através dos telexes, mas sim graças a um convidado para o seu programa. O visitante era Rui de Mascarenhas, um dos maiores expoentes do que era conhecido então como “nacional cançonetismo” que tinha combinado entrevista com Alecrim para essa noite antes de actuar no Hotel Lisboa (como é que Rui de Mascarenhas soube? Alecrim não explica. Qualquer dia hei-de lhe perguntar porquê…).

“Ficamos logo a recolher toda a informação disponível nos telexes e nas rádios estrangeiras, que levei depois ao “Portas do Sol” (famoso restaurante do Hotel Lisboa) onde estava o senhor major Lajes Ribeiro a jantar (era o “Abril em Portugal” que se comemorava todos os anos) e ao qual entreguei o que tinha podido colher”.

Mas Lajes Ribeiro já sabia.

–  “A notícia chegou-me por um telefonema do posto de rádio da polícia o qual recebia a “Press” (“Press” eram os chamados “SITREPES”, espécie  de relatórios de conjuntura distribuídos diariamente pelo “Estado Maior das Forças Armadas” para todas as unidades militares de Portugal e do Ultramar) que me deu conhecimento de que tinha acontecido o movimento e sido feita aquela declaração inicial que eu recebi passado algum tempo e tive ocasião de dar a notícia ao major Rocha Vieira (Chefe de Estado Maior da Guarnição de Macau). Foi com muita alegria, porque todos nós, ou pelo menos muitos de nós ansiavam que a solução viesse”.

Independentemente das suas próprias convicções, também o seu chefe Nobre de Carvalho confirmaria, em entrevista à “TDM”, onze anos depois dos acontecimentos, que “o 25 de Abril foi recebido bem por todos os portugueses e chineses. Os chineses, evidentemente, tendo uma ignorância grande sobre o que se estava passando embora eu tivesse tido ocasião de no “Conselho Legislativo”, com as notícias que recebia de Lisboa os pôr ao corrente do que se passava.”

No entanto, Macau (comunidade portuguesa e chinesa) recebia com cautela as novas informações que iam chegando, estando longe de registar (como seria de esperar, aliás) as esfusiantes cenas de entusiasmo das ruas de Lisboa.

– “Aqueles factos mais emblemáticos do 25 de Abril, não tinham possibilidade de concretização em Macau. Em Portugal, foram abertas as prisões e soltos os presos políticos, mas em Macau não tínhamos presos políticos. Foi o encerramento da PIDE/DGS, até com cenas de algum dramatismo. Mas, Macau era o único ponto do território português que não tinha PIDE/DGS (sublinha Lajes ribeiro). Se alguns vivas se pronunciaram, ou garrafas de champanhe se abriram em honra da revolução não foi nas ruas mas tão-somente na discrição disciplinada de alguns quartéis ou na intimidade das casas dos democratas”.

A este propósito diga-se que se efectivamente em Macau, formalmente, não havia PIDE/DGS (como a RPC tinha imposto anos antes, ao que se diz). De facto esta funcionava efectivamente sob cobertura de subsecções nas polícias Judiciária e de Segurança Pública.

O primeiro sinal verdadeiro de entusiasmo e rebeldia que se coadunava perfeitamente com o espírito da revolução veio não em forma de manifestação, de rua, mas através de um soneto à liberdade do então poeta proscrito Manuel Alegre, declamado de forma arrebatada em plena sessão do Conselho de Governo.

Quem o fez foi o jovem deputado José Celestino Maneiras, um arquitecto formado no Porto, que ali se tinha ligado aos círculos estudantis da oposição. Homem de esquerda que sempre manteve as suas convicções. Um acto inesperado de um jovem renovador que deixou estupefactos os seus colegas. Mas a atitude desse deputado ainda que de uma forma anti-regimental limitava-se, na prática, a declarar oficialmente, em nome de todos, autorizada a liberdade no território português da China. Isto ainda que o carimbo da censura perdurasse por mais de um mês em Macau depois da revolução de Abril.

O Conselho de Governo e o próprio Governador ficaram estupefactos, tanto mais que em Macau o autor de “A Praça da Canção” e de “O Canto e as Armas”, por não constar dos manuais do liceu era absolutamente desconhecido de quase todos, embora o não fosse há muito tempo dos círculos da oposição “portuguesa continental insular e ultramarina”. Manuel Alegre e Zeca Afonso já eram há muito os trovadores da liberdade em Portugal.

Mas a Macau nunca tinha chegado até então a voz grave e séria de Manuel Alegre que falava contra o regime nas ondas curtas desde Argel (Argélia) através da “Rádio Portugal Livre”. Enfim! Uma surpresa para Macau habituada no liceu a ouvir apenas as rimas de Camões, António Lopes Vieira e quejandos que constavam da selecta literária que Graciete Batalha ensinava no liceu e que via com maus olhos (supõe-se) a “Primavera Marcelista que já admitia outros trovadores mais hodiernos.

O caso ocorria em vésperas da fundação da primeira associação cívica local (concomitantemente com a restauração dos partidos políticos em Portugal) o “Centro Democrático de Macau” (CDM) agrupamento de democratas de diversas tendências formado com vista a contribuir para a liberalização política do Território.

Até ali a timidez continuava imperar, ainda que no dia 29 de Abril, os deputados (que então ainda não possuíam essa designação) tivessem concordado em obliterar o telegrama de Senna Fernandes enviado alguns dias antes e a insistências (diz-se)  do Governador reformular o dito decidindo-se por nova fórmula do mesmo texto, ou quase, reenviando desta vez com novo endereço e esse era não já o Palácio de S. Bento, mas o da Cova da Moura onde o General Spínola liderava a “Junta de Salvação Nacional” novo telegrama. Este, agora, transmitia incondicional apoio de Macau à nova liderança Nacional Revolucionária.

Para além de uma deputada (a inevitável Graciete Batalha), que se recusou a aprovar o teor do novo texto (como seria de esperar), ninguém mais pareceu registar qualquer contradição no facto.

O governador Nobre de Carvalho, acabava de anunciar ter sido confirmado no cargo pelo novo poder de Lisboa, o que parecia bom sinal, levando a generalidade dos deputados a acreditar nas boas intenções dos elementos da “Junta de Salvação Nacional”, entre os quais se contava o general Jaime Silvério Marques que governara Macau (1959/62) onde deixou numerosos amigos e saudades (ainda que também inimigos como é natural nestas coisas da política) e ao qual foi enviada igualmente uma mensagem especial de regozijo por constar na primeira fila da Revolução de 25 de Abril de 1974.

No “entrementes”, como se diria nas telenovelas brasileiras, Macau inteiro ficava na expectativa sobre o que iria acontecer a seguir.

E o que se seguiria não seria fácil para ninguém.

A História na Toponímia de Macau (II) 12-04-11

Se os ministros de Buda foram em larga medida ignorados na toponímia de Macau, a omissão estendeu-se também aos plenipotenciários de outras religiões, que não a católica, embora alguns destes se tivessem destacado na memória colectiva. É o caso de Robert Morrisson. Pastor anglicano. Morrisson viveu em Macau, em meados do século XIX, e aqui se dedicou a fazer a primeira tradução da Bíblia para chinês. Além disso, iniciou a publicação de jornais, compilou o primeiro dicionário de inglês/chinês, fez conversões e desempenhou importante papel de tradutor nas primeiras relações entre britânicos e portugueses, na China.

De espírito obstinado, desafiou o poder católico no coração do “Padroado Português do Oriente”. Sem sombra de tacto político, ou diplomático, afirmou-se ministro de uma religião abjurada pela lei católica em pleno largo da Sé. Desafiou condescendências e hospitalidades ao publicar jornais e livros à revelia do “imprimatur” do cabido (tímida e encoberta sucursal macaense da Santa Inquisição de Goa). Declarou-se amigo dos maçons ingleses (senão irmão) e desferiu a estocada final no bispo macaense ao converter meia dúzia de chineses à dissidência teológica de Martinho Lutero e João Huss (suprema heresia!…). Não admira por isso que depois de ter visto os seus jornais proibidos e de ele próprio ter sido empurrado para bordo da última fragata que deixava Macau com destino à nascente Hong Kong em 1841, Robert Morrisson fosse a única personalidade que nenhuma vereação do catolicíssimo Leal Senado pudesse considerar como capaz de apadrinhar fosse que rua fosse. A sua dissidência não lhe permitia sequer o direito a figurar num beco esconso, nem sequer num pátio, por mais recôndito. Aliás o seu nome (como que para descanso de consciências inquietas) ficava afinal perpetuado em seis palmos de terra, no cemitério protestante a dois passos do Jardim de Camões. Para a toponímia macaense parece ter bastado a lápide de granito que conserva o seu epitáfio em inglês: “HE SWEETLY SLEPT IN JESUS. HE WAS BORN AT MORPHET IN NORTHUMBERLAND, JANUARY 5TH, 1782.AND DIED AT CANTON, AUGUST 1ST, 1834”. Afinal se já tinha direito a um epitáfio gravado em granito, para que precisava de uma rua? Isto terá perguntado o bispo da diocese quando os vereadores do senado o confrontaram (se é que alguma vez o fizeram) com a irritante possibilidade de ressuscitar Morrison na toponímia.

De todos os exemplos apontados até aqui seria lícito concluir ao tal investigador do futuro que Macau sempre foi terra católica não se falando mais nisso. Quanto a budistas, protestantes e outros “items alienígenas”(?…) seriam assuntos de pormenor indicados apenas e só ao estudo dos especialistas do insólito e o insólito permaneceu apenas no Ramal dos Mouros onde se encontra a Mesquita que revive apenas, na comunicação social  uma vez por ano por altura do “Grande Prémio Automóvel” quando os automóveis fazem e desfazem a famosa curva.

No que respeita a omissões políticas fica a história exemplar do comissário Lin. Este funcionário do governo de Pequim enviado a Cantão para pôr termo ao tráfico do ópio influiu muito directamente no desenvolvimento de Macau, que a certa altura tinha eleito aquela droga como principal produto do seu comércio externo. Lin, conseguiu cumprir as ordens de saneamento do imperador queimando milhares de caixas do mortífero estupefaciente na foz do Rio das Pérolas e, sendo mesmo recebido em Macau, com honras de estadista para verificar afinal, que a colónia portuguesa, ao contrário dos ingleses que aqui viviam não sujava as mãos com tais produtos (ou que, pelo menos, os portugueses desempenhavam papel menor no tráfico). Neste ponto da história interessa pouco se os comerciantes portugueses do ópio escondiam ou não o produto ilegal enterrando-o nos quintais, ou se o ópio era carregado na ilha da Taipa para os “clipers” apenas para demonstrar que na península não se traficava. Ou mesmo se, a Companhia Britânica das Índias Ocidentais possuía a sede oficial de altas frontarias sobre o Porto Exterior onde lançava nos livros de contas os magros dividendos do licitíssimo comércio do chá e outra oficiosa (como actualmente nos off-shores finjanceiros) na quinta recuada da Casa Garden, do lado oposto da cidade, onde, aí sim os livros de contas se mostravam repletos de lucros do tráfico da droga. O que interessa de facto é que o Comissário pôde visitar Macau acompanhado do governador e das mais autoridades verificando que a ilegalização do fumo subversivo era cumprida em forma de lei. No entanto, o comissário Lin, que tanta importância teve na história macaense da primeira metade do século XIX nunca teve direito a qualquer reconhecimento. Segundo a toponímia tal zelador da lei e dos bons costumes (actualmente universalmente aceites), não consta, nem nunca constou, de qualquer via macaense. Diga-se no entanto que a comunidade chinesa também nunca fez qualquer esforço para que tal se concretizasse, erguendo-lhe afinal uma estátua tímida no adro do templo de Lin Fong Miu em 1987, mais de meio século depois de todo o mundo concordar que o tráfico do ópio constitui um delito universal que não permite desculpas nem subterfúgios. Que dirá hoje a alma do impoluto comissário à homenagem macaense, depois de em vida ter sido exonerado de funções pelo imperador por ter cumprido o seu dever, apenas porque a China perdeu a primeira Guerra do Ópio (1839-42) contra os ingleses?

No que toca a personalidades vitais não se pode esquecer que, ao contrário de todo o antigo império ultramarino, a economia de Macau esteve sempre na mão dos chineses. Foram estes (depois de esvaídos os faustosos tempos do “Barco Negro” em que os comerciantes portugueses dominaram) que tomaram nas mãos o leme do lucro, deixando aos portugueses apenas o encargo de zelar pelo bom funcionamento da burocracia do Estado legitimadora de todas as transacções comerciais. Sendo assim, sem dúvida que desde sempre foram os grandes capitalistas chineses que com os seus empreendimentos (associados, ou não aos portugueses, mas principalmente a ingleses, americanos, franceses, alemães e outros da panóplia universal das potências reinantes) mantiveram viva a importância da cidade, particularmente nos séculos XVIII e XIX, quando Macau entrava em decadência e apenas sobrevivia do tráfico do ópio da exportação de “cules”, do fogo de artifício e das fábricas de fósforos.

A toponímia, não preservou nomes assinaláveis desses empreendedores chineses. No entanto, o primeiro que ficou foi Lou Lim Iok, um aristocrata chinês (curiosamente republicano) que cultivava as artes comportando-se como um verdadeiro mecenas da renascença. Senhor de vastos interesses em Macau e na China, Lou Lim Iok actuou em Macau em épocas decisivas de convulsão, nomeadamente nos tempos de “brasa” da proclamação da república, quando os chineses se consciencializavam mais do que nunca do orgulho nacional perante a humilhação da derrubada dinastia manchu que tinha ajoelhado face aos poderes coloniais europeus.

O fim de Macau esteve então por um fio, particularmente em 1922 data em que após um período de motins e greves as tropas chinesas da república estiveram a um passo de ditar o fim de Macau. Lou Lim Iok, porém, interpretando a sapiência do seu povo que ultrapassava as conjunturas políticas, radicando nas profundezas filosóficas da velha China milenária, conseguiu conter por um lado excessos de orgulho nacionalista e por outro arroubos coloniais extemporâneos, demonstrando que Macau não constituía território em disputa.

Foi assim que Macau se salvou da desaparição graças a Lou Min Iok como principal figura, entre outros que não cabe na exiguidade desta artigo referir. Esta personalidade ímpar da história do século XX de Macau recusou todas as honras de ter salvo a cidade, exigindo que a sua mediação fosse mantida completamente secreta e a toponímia fez-lhe jus dando o seu nome ao jardim público que antigamente ele próprio construiu nos quintais privados de sua casa na zona nova de Mong Há, no meio do qual, entre bambuais verdes ornados de rochas cinzentas de granito construiu com orgulho no centro o ” Jardim da Relva Primaveril”. Nome simbólico que resta por decifrar. Lou Lim Iok, aristocrata honrado, filho de mandarins e convicto republicano que em sua casa viu nascer a redenção do seu país albergando Sun Yat Sen e os seus correligionários recusaria sabiamente apadrinhar uma qualquer rua, ou avenida de Macau, de Cantão, ou mesmo de Pequim. O seu jardim era mais do que bastante para a posteridade. Era bonito e recatado, atributos que convinham ao seu gosto estético e à sua aversão às primeiras filas.

A retirada oficiosa de um governador corajoso (III) 29 – 03 -11

Retomo aqui a última parte de uma série de três artigos sobre a passagem de Carlos da Maia por Macau como Governador. Um assunto que me foi suscitado pelo facto de ter descoberto, um tanto inopinadamente, uma carta do Secretário-geral do Governo (Ferreira da Rocha) dirigida a Afonso Costa (eterno líder da 1ª Republica) em que se queixava amargamente do seu superior hierárquico.

Afonso Costa entre os líderes republicanos

É uma carta mais pessoal do que política, na qual Ferreira da Rocha se justifica até à exaustão. Revela bem o que era então a política em Macau e, afinal o que continuaria a ser nos anos e décadas seguintes, ou seja: – uma impossibilidade de destrinçar claramente entre ideologia, sentido de estado e rivalidades pessoais patentes que se sobrepunham, muitas vezes a quaisquer outras considerações  numa pequena cidade em que todos se conheciam e em que os defeitos, mais do que as virtudes eram facilmente exaltados e ampliados do que a defesa serena dos interesses colectivos.

Aliás a carta de Ferreira da Rocha termina elucidativamente assinando: – “Ferreira da Rocha, Secretário-Geral fazendo as vezes de Sua Ex.ª. O Governador na sua ausência” (!…).

Retomemos então: –

Foi assim que com a inopinada partida de Carlos da Maia, as rédeas da administração ficaram nas mãos do seu inimigo pessoal (mais do que político) que era Ferreira da Rocha, ainda que não na qualidade de governador interino.

De facto o despacho de Carlos da Maia deixava expresso que Ferreira da Rocha apenas administraria assuntos correntes e cumpriria à risca as instruções políticas que lhe continuaria a enviar de Portugal e que lhe seriam comunicadas pelo seu ajudante de campo (que permaneceu em Macau), governando Ferreira da Rocha em seu nome. Apenas e nada mais do que isso.

As relações de Carlos da Maia com, Ferreira da Rocha, que pessoalmente já não existiam, desde, praticamente, o início do seu mandato, tinham-se deteriorado totalmente e igualmente do ponto de vista institucional.

Sobre esse facto será ilustrativo citar o próprio Ferreira da Rocha em carta pessoal dirigida a Afonso Costa que o ilustra bem.

Diz Ferreira da Rocha:

…Depois S. Ex.ª. Mostrou-me categoricamente os termos em que queria assinadas as portarias provinciais na sua ausência e deu-me uma minuta de portaria para a entrega do governo.

… Começara eu a ler a portaria, quando S. Ex.ª me disse mais que eu não me serviria da carruagem do governo pois tinha eu verba de representação e com ela poderia alugar carros.

Seguidamente mandou que eu dissesse se aceitava o Governo porque precisava de saber a tempo o que tinha de fazer.

Hesitei um instante sem saber o que responder; não tinha eu que dizer se aceitava ou não uma função que como consequência da lei era inerente ao meu cargo.

Noutro passo escreve, Ferreira da Rocha:

Depois disse-me S. Ex.ª  o Governador que não queria que eu me servisse do Palácio do Governo (Palácio da Praia Grande). Respondi-lhe logo que não tencionava ir residir para o palácio e que continuaria a viver na casa alugada onde moro. S. Ex.ª  disse então que não se referia só à residência, mas também a qualquer uso do Palácio do Governo, que este ficaria fechado e que despachasse eu na Secretaria-geral, que reunisse os conselhos onde quisesse: que pedisse mesmo para esse fim, se tal precisasse, uma sala à Câmara Municipal.

Mostrei a S. Ex.ª: que a Secretaria Geral instalada juntamente com a Repartição do Expediente Sínico, a Procuradoria Administrativa dos Negócios Sínicos, a Administração do Concelho, O Comissariado da Polícia e os calaboiços dos presos, numa antiga casa particular comprada pelo Estado, não dispunha de mais um gabinete sequer onde eu pudesse receber chefes de repartições a despacho (actuais directores de serviços).

Mais adiante continua:

Eu não devia enquanto substituísse S. Ex.ª dispensar um gabinete próprio adequado, onde recebesse chefes de serviços, ou pessoas de categoria, que, em dias de recepção oficial, como o aniversário da República, não podia receber os funcionários senão no Palácio do Governo; que se tivesse de dar um jantar oficial não poderia faze-lo na minha modesta residência; que não tinha onde reunir os conselhos do Governo de Instrução Pública, Obras Públicas, Obras do Porto, etc. que à testa do Governo não pediria à Câmara Municipal casas emprestadas para esse fim, estando convencido que nem mesmo S. Ex.ª  faria tal pedido e pedi finalmente a S. Ex.ª  que fechasse o primeiro andar do Palácio onde instalara a sua residência mas que deixasse abertas as salas exteriores do rés do chão, isto é o gabinete de despacho e a sala de reuniões dos Conselhos(estas salas seriam mais tarde continuadamente ocupadas pelo (Conselho Legislativo, anterior ao 25 de Abril de 1974 e mais tarde pela Assembleia Legislativa).

… S. Ex.ª manteve-se por fim intransigente afirmando que à sombra de excepções que fizesse, os seus inimigos o iriam desprestigiar na sua própria casa enquanto ele ainda fosse Governador.

Insisti em que não iria residir para o Palácio do Governo, embora o pudesse fazer. S. Ex.ª  exclamou que não devia eu dizer tal coisa, porque não ia nem havia de ir para o Palácio.

Palácio da Praia Grande.  Sede do Governo e residência dos governadores até à década de 1950. Actualmente continua a ser a sede (ainda que apenas formal para as grandes recepções do governo da Região Administrativa Especial de Macau) .

Claro que a intransigência de Carlos da Maia não teve efeitos práticos, embora a situação de indefinição quanto à manutenção no cargo do Governador, se prolongasse pelos sete meses seguintes até Maio de 1917, data em que um despacho do novo governo de Afonso Costa, o exonerava do cargo.

Mas o caso acabaria por se prolongar afinal ainda mais.

É que a exoneração seria logo a seguir anulada, e o governo de Macau, mais uma vez entregue a um interino, Vieira de Matos, que substituía um Conselho de Governo, que antes, por seu turno, tinha substituído, Ferreira da Rocha.

Assim e para todos os efeitos, Carlos da Maia continuou durante mais de um ano a ser nominalmente, Governador de Macau, até finalmente a sua demissão ser plenamente aceite e nomeado Governador, Artur Tamagnini Barbosa, em 1918 (esta situação faz lembrar o longo e atribulado período de substituição do Governador Carlos Montez Melancia (1987-91) durante o qual Macau foi governado igualmente interinamente pelo Secretário-Adjunto Murteira Nabo sem se saber quem seria o próximo governador. Se o interino, ou se alguma nova personalidade que Lisboa decidisse nomear.

Em todo este “imbroglio” de salientar o facto de Carlos da Maia apesar da sua condição militar, ter optado sempre, em Macau, por se apoiar não nos seus camaradas da marinha, mas nos da guarnição de terra.

Alguns casos exemplares eram não só os rumores sobre a intenção de pretender entregar o governo da Colónia a um oficial do exército, mas também o de ter conferido o comando da guarnição da Ilha da Lapa a outro oficial do mesmo ramo, embora este comando estivesse sedeado num navio surto no Porto Interior, o que motivou novas queixas da Armada.

Outra questão relevante para a qual não encontro resposta cabal é o facto de em Macau a maioria dos inimigos políticos de Carlos da Maia (maçom e carbonário), o serem igualmente também.

Uma possível explicação para este facto aparentemente anómalo poderá prender-se com a ocorrência de uma cisão na Maçonaria Portuguesa, referida pelo historiador A. H. Oliveira Marques segundo a qual ocorreu nessa altura (1914) uma dissidência na principal obediência maçónica portuguesa, o “Grande Oriente Lusitano”, tendo sido Carlos da Maia um dos que a encabeçou.

Não esquecer que a Maçonaria e o seu braço armado que era a “Carbonária” serem unanimemente considerados pelos historiadores, como as organizações que estiveram na base da proclamação da República e os verdadeiros centros de poder acima dos partidos, durante todo o período da 1ª República.

Concluo referindo que apesar de todas as dissenções, jogos políticos amizades e inimizades pessoais, certo é que as grandes linhas políticas implementadas por Carlos da Maia, em Macau, não foram interrompidas com o seu mal esclarecido final de mandato, mas prosseguidas pelos seus sucessores, com maior, ou menor sucesso.

Ate mesmo a alteração do “Estatuto Orgânico do Território” foi levada a bom termo se exceptuarmos o tocante ao artigo que previa a extinção da Câmara Municipal (Leal Senado), que tacitamente seria deixado cair.

Depois de abandonar Macau Carlos da Maia, aderiu ao movimento nacionalista que antecedeu o 28 de Maio de 1926, liderado por Sidónio Pais, antes de se retirar da vida pública amargurado com a política e com os políticos.

A “Camioneta Fantasma”

…A camioneta continuou a sua marcha sangrenta, agora em busca de Carlos da Maia, o herói republicano do 5 de Outubro e ministro de Sidónio Pais. Carlos da Maia inicialmente não percebeu as intenções do grupo de marinheiros armados. Tinha de ir ao Arsenal por ordem da Junta Revolucionária. Na discussão que se seguiu só conseguiu o tempo necessário para se vestir. Então, o cabo Abel Olímpio, o Dente de Ouro, agarrou-o pelo braço e arrastou-o para a camioneta que se dirigiu ao Arsenal. Carlos da Maia apeou-se. Um gesto instintivo de defesa valeu-lhe uma coronhada brutal. Atordoado pelo golpe, vacilou, e um tiro na nuca acabou com a sua vida.

A camioneta, com o Dente de Ouro por chefe, prosseguiu na sua missão macabra. Era seguida por uma moto com sidecar, com repórteres do jornal Imprensa da Manhã. Bem informados como sempre, foram os próprios repórteres que denunciaram: «Rapazes, vocês por aí vão enganados… Se querem prender Machado Santos venham por aqui…». Acometido pela soldadesca, Machado Santos procurou impor a sua autoridade: «Esqueceis que sou vosso superior, que sou Almirante!». Dente de Ouro foi seco: «Acabemos com isto. Vamos». Machado Santos sentou-se junto do motorista, com Abel Olímpio, o Dente de Ouro, a seu lado. Na Avenida Almirante Reis, a camioneta imobiliza-se devido a avaria no motor. Dente de Ouro e os camaradas não perdem tempo. Abatem ali mesmo Machado Santos, o herói da Rotunda.

Morreria, assim, com ficou descrito,  assassinado na noite sangrenta de 19 de Outubro de 1921, juntamente com Machado Santos, que com ele fundara a República, num episódio ainda hoje mal esclarecido, conhecido pelo incidente da “Camioneta Fantasma”. Um momento tão dramático, como pungente, que ficaria para a história de Portugal perpetuado de modo semelhante ao que para os Estados Unidos da América ficou o assassinato do presidente John F. Kenedy (Dallas, 2 de Novembro de 1963), dando lugar desde então a todo o tipo de especulações e boa pena a sucessivas gerações de cultores da “teoria da conspiração”.

Berta Maia
Páginas para a história da morte
vil de Carlos da Maia, republicano
-combatente de 5 de Outubro-
2ª Edição Aumentada
Lisboa
1929

Que “jagunço” de alguém seria o transmontano Abel Olímpio o  “Dente de Ouro”?  Quem seria ele próprio? ainda hoje está por se saber ao certo!… Apesar das entrevistas de Berta Maia

Operação Emily: A tentativa frustrada inglesa de vender Macau. 22-Março-11

Uma série de números e um código: – “9735”. Esta foi a mensagem secreta do “Inteligente Service” inglês que em linguagem clara, depois de descodificada pelos oficiais da cifra, queria dizer em telegrama: – “Apesar. Todos esforços. Governo português. Diz não. D. Sinibaldo morreu Madride 1868. Operação venda Macau inviabilizada. Assinado; Duncan Campbel”.

No quadro de desmoralização moral política e económica que se vivia em Portugal na segunda metade do século XIX, desde finais da guerra civil (1834), vender o império ultramarino em parcelas parecia (a alguns) a única forma de resolver a crise financeira em que o país estava mergulhado. E o que se dizia à boca pequena nos corredores da intriga de Lisboa acabaria por ser assumido publica e notoriamente pelo deputado José Bento Ferreira de Almeida que num discurso no Parlamento, em 21 de Janeiro 1892 propôs, sem medo de perder votos, ou ficar de mal com a opinião pública, colocar em leilão as colónias para fazer face ao défice orçamental do Estado que ascendia a 10 mil contos. Excluía da eventual venda apenas Angola, Goa e S. Tomé e Príncipe (não sei por que não Cabo Verde,!…). “A ideia gerou uma violenta repulsa” como seria natural antever.

Apesar do atrevimento político que actualmente produziria, sem dúvida, aberturas sucessivas de telejornais, primeiras páginas da imprensa  e os mais variados comentários da “blogosfera”, mais a queda do Governo, os ecos do discurso, não foram muito além dos corredores de S. Bento, ainda que tenham tido repercussão nos “media” da época.

O discurso de Ferreira de Almeida foi seguido, em concordância, por alguns dos mais influentes políticos e intelectuais de Portugal, nomeadamente o influente ministro Conde de Casal Ribeiro que o secundava dizendo no Parlamento: – “nós havemos de viver ou deixar de viver segundo o juízo que tivermos cá dentro e não pela nossa grandeza colonial”. Oliveira Martins juntava-se ao coro afirmando que “as possessões ultramarinas seriam a causa da ruína nacional”. Cumulativamente em “As Farpas” Ramalho Ortigão colocava a questão: – “Para que temos colónias?”. Finalmente não se pode deixar de citar Eça de Queiroz que redundantemente dizia mais, ou menos o mesmo: – “Para evitar esse dia de humilhação, sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX e vendamos as colónias”.

A inteligência portuguesa parecia nesse momento histórico afinar pelo mesmo diapasão.

Mas a verdade é que Ferreira de Almeida ia, tal com os outros todos, já bem contra corrente.

Uma opinião pública maioritária que pugnava resolutamente pela defesa “à outrance” do império ultramarino português, contra as ambições das potências europeias que entre si dividiam o mundo a tira-linhas sobre mapas convenientes que não correspondiam minimamente a territórios verdadeiros, gentes e culturas, mas apenas às ambições imperialistas e comerciais de quem sabia, ou pensava, que tinha o Mundo na mão tomava a supremacia.

Por outro lado a opinião pública portuguesa dispersa pelo Mundo e de séculos inter-étnica manifestava também supremacia sobre os hodiernos mapas que representavam na prática a divisão de povos, de culturas e até de famílias sem cuidar de mais nada. O sentimento popular sobrepunha-se ao positivismo global que tinha em pouca conta esses pormenores da “política agiota” e contabilística concentrada em Lisboa.

Pouco ouvida em Portugal, a voz do deputado Ferreira de Almeida(e dos outros), ainda que clara e indignadamente bem percebida nas colónias, não deixou também de ser notada e transmitida pelos embaixadores estrangeiros acreditados na capital portuguesa aos seus governos, em relatórios que acrescentavam exagerados pontos de intriga ao que eram apenas posições minoritárias entre correntes de vanguarda do pensamento nacional (dir-se-iam os “WikiLeaks” dos dias de hoje) .

Quem terá prestado mais atenção ao discurso do mais, ou menos obscuro deputado, terá sido o britânico “Foreign Office” que dele terá dado conhecimento a Sir Robert Hart, Inspector-geral das alfândegas marítimas da China. Este irlandês nascido em 1835, tinha a seu cargo todo o sistema alfandegário do “Celeste Império” decorrente dos acordos (designados, posteriormente, por Pequim, como “Tratados Desiguais” resultantes das guerras do ópio que a China tinha perdido e fora obrigada, por isso, a abrir ao comércio internacional vários Portos das suas costas para além de ceder inúmeras vertentes da sua soberania nacional e irracionais indemnizações compensatórias sobre prejuízos de guerras que para além de não ter desencadeado tinha perdido.

Independentemente de justezas morais, ou de direito internacional, certo é que todos esses Portos se passaram a pautar por um regime uniforme (Xangai, Amoy, Shiamen, etc.). Desse conjunto apenas se exceptuava Macau, colónia portuguesa e porto igualmente livre que se encontrava fora da alçada do imperialismo britânico.

Perante esse panorama de aparente anomalia (ponto de vista inglês!…) era não só necessário como urgente normalizar a situação, ou seja regularizar as pautas alfandegárias pelos princípios da “common Law” extrovertidos no clausulado dos tratados e foi o que Robert Hart pôs em execução.

Num primeiro passo rodeou Macau de uma série de postos alfandegários, sedeados na ilha da Lapa que se destinavam a inviabilizar, na prática, a franquia do porto de Macau, ou seja qualquer navio comercial que aqui aportasse, não pagaria taxas nem impostos desde que as suas mercadorias se destinassem a Macau como porto final de destino. Se fossem mais além os funcionários ingleses ali estavam a dois passos para travar o passo ao comércio livre por que tanto pugnavam: – Contrabando patente! clamava Robert Hart, nos jornais da China e no conservador “The Times”!… Na verdade do que se tratava era de um verdadeiro embargo.

No entanto, o cerco não se revelava suficiente nem eficaz, pelo que Robert Hart teve que congeminar melhor forma de acautelar os interesses de Sua Majestade Britânica (que não da China, naturalmente (!…). Para isso e fundando-se na história (sempre a história!…) não encontrou melhor fórmula para resolver a questão senão a de congeminar um plano de integrar Macau no âmbito dos “Portos do Tratado” negociados entre as potências ocidentais – Grã-Bretanha, Alemanha e França, entre outras, mas de que Portugal tinha sido excluído).

Para o efeito lançou uma operação secreta que visava, não a reocupação de Macau por Pequim, mas antes a venda da colónia portuguesa à China. Assim poupava novas guerras evidentemente desnecessárias, não onerava o orçamento da marinha britânica do Extremo Oriente, nem tinha que obrigar o Ministério da Guerra de Sua majestade a perder tempo a fazer orçamentos extraordinários para obliterar à foca das canhoneiras, como tinha tantas vezes feito antes, um território que não chegava a ter 16 quilómetros quadrados de geografia nem forças armadas capazes de sustentar uma guerra verdadeira.

Para isso engendrou um cálculo financeiro baseado no antigo pagamento anual que Macau rendia à capital do “Império do Meio”chamado “foro do chão”. Um contracto de arrendamento que o governador Ferreira do Amaral (1846-49) tinha deixado de satisfazer, ainda que pagando com a vida o unilateral termo de tal entendimento que vinha de séculos anteriores.

Feitas as contas, Portugal deveria em rendas atrasadas cerca de um milhão e trezentos mil taéis (cerca de 314 mil patacas) que tendo em conta a inflação, nos dias de hoje, seriam bem mais de três mil e quatrocentos milhões de patacas. A “bolada” seria repartida em proporções definidas entre o Ministério dos Negócios estrangeiros da China (Zongliyamen), as alfândegas (inglesas) de Sir Robert Hart (não se sabe ao certo em que partes) e Portugal. O mediador de todo o projecto seria, nem mais nem menos, do que o bem conhecido D. Sinibaldo de Mas (de que falei em artigos anteriores), um dos fundadores da ideia do Iberismo, que , Robert Hart tinha escolhido como pivot essencial para toda a operação, pelas suas excepcionais ligações às cúpulas políticas portuguesas.

A proposta idealizada por Hart, foi feita ao veterano funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Espanha por James Duncan Campbel, líder de uma missão secreta a Madrid (enviada por Hart em nome do Zongliyamen) destinada a convencer D. Sinibaldo das boas razões de Inglaterra (ainda que sob o interposto nome e oficial mandato da China). D. Sinibaldo de Mas, já velho e retirado da política aceitou a proposta. Sir Robert Hart exultou com a boa vontade do prestigiado diplomata reformado que gozava confortável velhice em Madrid a escrever memórias e tratatos de teoria política.

Nesse momento porém os “desígnios de Deus” mudaram-se de um momento para o outro.

Em Portugal a opinião pública juntava-se aos que recusavam a venda do império português em nome dos ideais e contra o lucro agiota, como diria o poeta Guerra Junqueiro. O iberismo tinha passado, de um momento para o outro das mãos dos conservadores e absolutistas de D. Miguel para as “Conferências do Casino”, liberais, democratas e anarquistas da geração de 70 que declaravam que de Portugal nenhuma parcela se encontrava à venda.

Apesar disso. Sir Robert Hart e o “Forheign Ofice” ainda acreditavam que a operação poderia ter sucesso.

D. Sinibaldo de Mas tinha na mão (pensavam os ingleses), o “think tank” das elites portuguesas. Erro maior. Não tinha! A política portuguesa que parecia estar sensível à venda já não estava.

Mas como as comunicações nesses tempos tardavam dias e às vezes meses, mesmo em curtas distâncias, o “Foreign Office” também tardou a saber que D. Sinibaldo de Mas se tinha finado (idoso) em sua casa espanhola antes de ter podido empreender qualquer diligência.

Se D. Sinibaldo de Mas não tivesse falecido nessa altura talvez a “Operação Emily” redundasse num rotundo e universal sucesso que poderia ter desembocado numa curva maior da história universal. Por ele tinha (aparentemente, ou talvez mesmo efectivamente) em Portugal não só a Igreja Católica como a classe política (inter-partidária) e a Maçonaria, ou seja todos os mais importantes decisores do Portugal de então.

Mas a verdade é que o desaparecimento de um “pivot” essencial do curso dos tempos (D. Sinibaldo) mudou o rumo dos ventos do futuro.

Sir Robert Hart recebeu de Duncan Campbel, pelo telégrafo, em cifra, o número de código fatal: – “9735”. Os quatro números de código que significavam que a “Operação Emily” não tinha tido sucesso. Portugal não considerava à venda nenhuma das suas colónias.

Os serviços de inteligência ingleses sofreram então um dos mais rotundos fracassos e Macau continuou até hoje a singrar na história.

PS:

Este artigo, bem como os anteriores, sobre o Iberismo, nunca teriam surgido a público se não fosse meu filho (João e Guedes como eu), finalista do curso de Direito, que num dos seus trabalhos para uma das “ignotas” cadeiras em que o Direito é fértil não me tivesse perguntado:- quem era D. Sinibaldo de Maz? Confesso que o nome me tinha passado por diversas vezes sob os olhos sem nunca me despertar a mínima atenção, mas ao pedido filial urgente correspondi como pude e pude assim preencher um hiato histórico que agora me pergunto como  me desleixei passando em claro durante estes anos todos uma coisa que estava patente e  à vista e que tinha que ser divulgada fora dos meios académicos e que só o não foi por causa dos vesgos olhos da política sectária que marcaram mais de três quartos do século XX português e ultramarino.

Obrigado a ti e à tua geração que não viveu esses tempos mas que quer saber quês e porquês para fazer melhor, ou pelo menos, não repetir inconscientemente os mesmos erros.

Haja Deus!…

Atribulações de um republicano português na República da China (1914-16 (I) – 08 Março 11

Nas duas décadas que permearam entre o final do século XIX e o início do século XX, a oposição parlamentar não monárquica, em Portugal, embora contendo em si sensibilidades diferentes, era representada apenas pelo Partido Republicano, facto que fez com que fossem apenas os seus representantes a ocupar o “Parlamento Constituinte” e a redigir a nova Constituição, dada à luz em 1911.

Todavia, mal instalada a República, as diversas tendências, iniciam um movimento centrífugo, dando origem a novas formações partidárias entre as quais se destacou desde logo o Partido Democrático (que viria a dominar pelos anos subsequentes o parlamento, umas vezes sozinho, outras coligado), o Partido Evolucionista e o Partido Unionista, entre outros de menor expressão nacional, como o Partido Socialista, cuja influência era então quase nula nos corredores parlamentares.

Neste ponto convém lembrar que a República surgiu como um regime onde o poder político residia apenas e só no parlamento, dependendo os executivos das maiorias que ali se formassem. O “Presidente da República” não passava politicamente de “figura de retórica” quase destituído de poderes para além dos de representação protocolar do Estado.

Neste cenário, poderia retirar-se a ilação de que situação semelhante se reflectiria igualmente em Macau.

Sendo que a palavra “Governo” fosse oficialmente aplicada, nomeadamente nos documentos legais e boletins oficiais, de facto não existia propriamente um governo, em Macau, mas apenas o Governador, já que esta era a figura que concentrava os poderes executivo e legislativo (ainda que sob a tutela do Ministério das Colónias).

O governador delegava apenas poderes funcionais nos chefes das diversas repartições que não passavam de meros funcionários públicos sem qualquer autonomia.

Além disso o Governador era também o comandante militar do Território.

A segunda figura da colónia era o Secretário-Geral do Governo, normalmente funcionário da administração ultramarina, que embora substituísse estatutariamente o Governador nos seus impedimentos, igualmente não possuía qualquer autonomia política, ou administrativa, para além da faculdade de despachar assuntos correntes de menos importância que não necessitavam da aprovação do governador.

Por isso a mera repetição em Macau do contexto político da Metrópole, não existia, de direito.

Porém existia de facto e provocava tanta agitação como a que se verificava em Portugal, ou mais ainda tendo em conta que a ela se adicionavam os problemas sócio políticos específicos da colónia.

A nomeação dos governadores e dos funcionários públicos que o coadjuvavam derivava de diferentes razões políticas, ou de empenhos pessoais e emanava muitas vezes de diferentes partidos, ou de outras forças presentes no teatro pós revolucionário republicano com destaque para a Maçonaria e por algum tempo a “Carbonária”.

Efectivamente, tanto os governadores como os principais funcionários, eram nomeados pelo facto de pertencerem ou estarem próximos dos partidos e forças dominantes em Lisboa, como seria natural.

No entanto por vezes ocorria precisamente o oposto, ou seja, quando ao Terreiro do Paço, convinha afastar figuras incómodas mas populares e prestigiadas, ou simplesmente influentes, que não tinham lugar na chefia das repartições públicas, nos elencos ministeriais, ou nas listas de candidatos a deputados, a atribuição de um posto de relevo nas colónias, era solução correntemente adoptada.

Finalmente, nalguns casos, eram razões tácticas que levavam a nomear esta ou aquela figura para posto importante no Ultramar a fim de a afastar das intrigas da capital, esperando ali apenas notícias da alteração da conjuntura e do momento propício para regressar à ribalta lisboeta.

Para muitos esse momento ia-se protelando e esses auto-exilados acabavam por ficar afastados, senão para sempre, pelo menos tempo demasiado para poderem voltar a nutrir aspirações na Metrópole.

Um exemplo dessa prática pode constatar-se no destino dado a uma parte significativa da classe de sargentos, uma das que mais fervorosamente se bateu pela República, particularmente os que com Machado Santos combateram, praticamente sozinhos, na Rotunda, nos dois, ou três dias, que ali se mantiveram sitiados a pé firme em armas, enquanto esperavam as adesões de outras forças militares afectas, que depois de conhecidos o assassinato dos dois chefes da revolta, Miguel Bombarda assassinado por um doente mental (3 de Outubro de 1910) e o suicídio do Almirante Reis, no dia seguinte, vacilaram e por isso tardavam em pronunciar-se.

Com o regime, finalmente, triunfante, no dia 5 e a proclamação da República, na Câmara Municipal de Lisboa, o seu heroísmo foi propalado aos quatro ventos, mas o prémio do sacrifício acabaria por ser o de se verem preteridos nas promoções, ou ainda que de modos subtis, pura e simplesmente afastados.

Esses bravos que apareciam nas fotografias rodeados pela aclamação de multidões em delírio, e nos panegíricos dos articulistas dos jornais não eram afinal mais do que bravos no limiar de serem transferidos das fileiras das forças armadas para as fileiras do desemprego.

Afinal diz-se que as revoluções têm tendência para devorar os seus próprios filhos e neste caso mais uma vez assim foi. Não sobrariam arrivistas de última hora para os substituir.

De algum modo, a República terá tido as suas razões para os abater à carga. De facto uma significativa maioria dos sargentos, era oriunda dos institutos politécnicos, contando por isso habilitações académicas que os qualificavam, estavam fortemente politizados, possuíam vincado sentido de classe e pertenciam na sua esmagadora maioria à “Carbonaria”, organização que os enquadrava e que defendia posições de grande radicalismo.

O Conjunto dessas características fazia,  assim, com que o novo regime visse na classe de sargentos não a guarda pretoriana da República, mas apenas um elemento desestabilizador, num momento em que qualquer radicalismo poderia pôr em perigo a consolidação das novas estruturas de poder.

Um dos visados por esta primeira purga republicana foi Domingos Gregório da Rosa Duque, que deixou nome no jornalismo e na política em Macau.

Articulista na polémica revista dos sargentos do exército que se publicava em Lisboa, foi convenientemente mobilizado para Angola na perspectiva de que o Sol dos trópicos se não lhe amolecesse a pena, e a exaltação pelo menos lhe moderasse as ideias.

No entanto assim não aconteceu e em Angola,  Rosa Duque, não se calou, continuando a afrontar arrivistas e vira-casacas, proclamando alto e bom som os seus pergaminhos da Rotunda o que lhe valeu a expulsão das forças armadas e novo exílio mas desta vez na mais longínqua Macau.

Só muitos anos mais tarde o regime pelo qual tão denodadamente tinha combatido lhe devolveria o que lhe deveria ter dado no dia seguinte ao da Revolução.

A reintegração no exército com o posto de capitão.

Neste caso diga-se, de passagem, que se o exército terá perdido um bom oficial, a República ganhou, ainda que no extremo mais oriental do Portugal ultramarino de então, um dos seus mais estrénuos e indefectíveis defensores e propagandistas, sem peias mas também sem ressentimentos.

“A Verdade” e “O Combate”, jornais que aqui fundou e dirigiu estão aí a prová-lo.

No caso de Carlos da Maia, a razão da sua vinda para Macau, constitui assunto bem menos claro e por isso mais difícil de abordar do que o de Rosa Duque, mas não parece haver dúvidas de que se tratou também de um afastamento intencional dos centros de decisão de Lisboa.

O que não se sabe é se teria sido voluntário, ou forçado.

Na panóplia dos militares republicanos, Carlos da Maia era sem dúvida o segundo dos seus mais prestigiados líderes, quase a par de Machado Santos.

Mas enquanto este, um pouco à semelhança do capitão Salgueiro Maia, do 25 de Abril, se manteria bem mais estritamente nos domínios castrenses, ocupando apenas uma pasta política de relevo durante o breve consulado de Sidónio Pais, Carlos da Maia, rapidamente despiu a farda para passar a envergar o fraque civil nos meandros da política.

Nessa data, a instabilidade no país acentuava-se, com a eminência da entrada de Portugal na “Primeira Grande Guerra Mundial”.

A bipolarização entre os que apoiavam a participação nacional no conflito e os que a rejeitavam era mais do que nunca evidente. Assim qualquer pronunciamento num, ou noutro sentido, tanto poderia significar uma ascensão em glória, como o fim em apróbio de qualquer carreira política.

Nada traduzia melhor a situação do que a formação do primeiro governo que enfrenta o limiar da entrada de Portugal na “Grande Guerra Mundial” (1914-18) e que era maioritariamente constituído por independentes, escusando-se a maioria dos dirigentes partidários a dele fazerem parte.

Afonso Costa, chefe do “Partido Democrático” dava o mote retirando-se estrategicamente, nessa altura, para a docência ao assumir a direcção da Faculdade de Direito, de Lisboa. Como ele outras figuras faziam compassos de espera aguardando clarificação da correlação de forças.

A eminência da entrada de Portugal na guerra e a possibilidade de o conflito se estender à região Ásia Pacífico terá sido a razão oficial aduzida para nomear Carlos da Maia governador de Macau.

Todavia, o facto de pertencer à “Carbonária”, tornava-o naturalmente também figura que interessaria a todos muito mais afastar do que manter perto de S. Bento.

Mas se em Macau o governador era quem tudo mandava, outras figuras aqui viviam e faziam política.

Entre elas contavam-se oficiais da marinha e do exército em comissão de serviço que tinham participado activamente no 5 de Outubro que não só exerciam as suas funções militares, mas também cargos civis na administração.

Por outro lado, Macau constituía um círculo eleitoral com direito a eleger um deputado e um senador para o congresso de Lisboa, os quais não dependiam hierarquicamente do governador.

Em 1914, Carlos da Maia, vem encontrar em Macau tanto no contexto civil, como militar, uma situação política complexa.

Tanto mais complexa quanto a recém proclamada “República da China” lutava pela sobrevivência contra forças reaccionárias que ameaçavam proclamar de novo a monarquia imperial e nesse tempo Macau era ponto focal da resistência republicana contra os que queriam repor o passado.

Nota: No meu artigo da semana passada chamei “conde” ao santo que dava o nome ao antigo hospital civil de Macau onde hoje se encontram as instalações do Consulado de Portugal na Rua Pedro Nolasco da Silva. Claro que o santo nunca foi conde, como é óbvio! Foi e é apenas S. Rafael.

Por outro lado classifiquei a família Rotshild como anglo-americana, quando na verdade era anglo-francesa, de origem judaica, embora os seus interesses se estendessem também em significativa parte aos E.U.A. Aqui ficam as correcções devidas.

Macau 1850: – O mistério do maior desastre naval ultramarino português dos últimos duzentos anos. 01 Março 11

No dobrar da primeira metade do século XIX o que restava do império ultramarino português vogava entre sentimentos redentoristas de uns e abatida descrença de outros.

Portugal saído de três invasões francesas (1807-14) e de uma guerra civil (1828-1834) encontrava-se completamente exausto em todos os sentidos. Os cofres do estado estavam vazios, o país vivia a letras de crédito e o pessimismo imperava na política e na cultura.

A dívida externa era colossal. A situação dos dias de hoje, comparada com esses tempos, não seria mais do que a falta de pagamento de um mês de renda de casa e condomínio indevidos que poderiam ser pagos quando Deus quisesse.

Nesse tempo, o investimento público e privado interno era praticamente inexistente. Restavam como pulmões económicos ainda que cronicamente “asmáticos” os proventos do Vinho do Porto das vinhas do Alto Douro (que os ingleses geriam e de que retiravam a maior parte dos lucros), os reduzidos têxteis da Covilhã e algumas indústrias de vidros e porcelanas de Sacavém e da Marinha Grande que despontavam e que, se mantinham a fortuna pessoal de alguns, eram claramente insuficientes para fazer sair Portugal, por inteiro, da crise profunda em que estava mergulhado. O resto do povo sobrevivia na miséria a cavar a magra terra.

O exército estava reduzido à expressão mais simples. Quanto à marinha, com meia dúzia de fragatas e corvetas, mal navegava para não gastar o dinheiro do orçamento disponível que não chegava sequer para pagar o concerto dos navios, quanto mais para patrulhar o ainda imenso império ultramarino português. Por isso ficavam ancoradas no Tejo à espera de melhores dias, vogando, de quando em vez, até ao porto do Rio de Janeiro, do outro lado do atlântico e vice-versa, a fim de manter as aparências de um reino unido, como consagrado umas décadas antes entre Portugal e o Brasil, por tratado, visado, mas que para todos os efeitos não existia desde o momento em que foi assinado (se é que alguma vez chegou a estar em vigor de facto e de direito).

Nas bolsas de Londres e de Paris, os títulos do tesouro português valiam apenas o que os grandes especuladores da bolsa, como Mendizabal (o Soros de então e os Rotshild anglo-franceses e igualmente especuladores internacionais) faziam crer que valiam. Ou seja, de facto, nada…

Nesse contexto de crise e desespero, diga-se, Portugal não se encontrava sozinho. De facto a vizinha Espanha igualmente saída recentemente das mesmas e sucessivas crises (invasões francesas, e guerra civil, para além dos movimentos independentistas bolivarianos das Américas) encontrava-se em condições semelhantes.

Portugal tinha, por força de todas essas circunstâncias, políticas e económicas, perdido o Brasil. A Espanha, por seu turno e por semelhantes circunstâncias, perdeu um continente inteiro, ou seja: – as Américas do centro e do Sul.

Nesse paralelo não admira que entre os dois rivais ibéricos surgisse, nessa conjuntura de “desgraça”, um certo sentimento de solidariedade.

Salvar os dois impérios ultramarinos sempre desavindos desde o “Tratado de Tordesilhas” contra a crescente supremacia das restantes potências europeias que chegavam, bem mais de dois séculos tardios à corrida global: – Inglaterra, França, Alemanha e Holanda – já não contando com os modernos Estados Unidos da América do Norte (EUA) que entravam na liça como hodiernos conquistadores (Estes ainda que apostassem na força das armas, como os outros, mas diferentemente entendiam que os exércitos e as marinhas não eram mais do que suportes pragmáticos para fazer valer negócios e extrair lucros do comércio que, no século XIX, tudo movimentava e a tudo se começava a sobrepor) parecia ser imperativo.

Nesse contexto a tal solidariedade ibérica poderia ser uma solução?

Foi assim que, então, se colocou a possibilidade do Iberismo. Uma eventual federação entre Portugal e a Espanha que salvasse os interesses do Portugal ultramarino a Leste do tratado de 7 de Junho de 1494 (o tal de Tordesilhas). Uma proposta que se no Extremo Oriente faria todo o sentido em Portugal e Espanha pouco faria como se viria a verificar (falei deste assunto em artigos anteriores aqui nos “Sinais”.

Foi nesse ambiente datado que os defensores dos passados imperiais comuns e de sebastianismos inconsequentes, manobraram em Lisboa e Madrid no sentido de sair da depressão com um passo resoluto para a China.

Perdido o Ocidente, e periclitante o Oriente, a China poderia ser uma saída airosa e de futuro. Principalmente para Espanha que o único pé que tinha no Levante eram as Filipinas.

O objectivo táctico de Lisboa, em eventual consonância com Madrid (ainda que duvidosa) seria o de enviar as tais fragatas e corvetas que descansavam no Tejo à espera de reparo decente para o outro lado do mundo. Isto, claro, depois de armadas municiadas e completadas com o embarque de companhias de infantaria devidamente preparadas para iniciarem uma campanha que se destinaria a desembarcar em Macau com fardas e clarins, tambores; engenharia; apoio de artilharia de campanha; estabelecimento de bivaques e em seguida conquistar toda a ilha de Sheong Sam (onde Macau se situa).

Politicamente a operação afigurava-se fácil para quem nela queria acreditar. O exército chinês como era sabido (através dos despachos dos correspondentes dos jornais europeus sedeados na China e dos relatórios dos governadores de Macau e dos oficiais de “inteligência” da Marinha, era evidentemente antiquado e não teria força para se opor a duas centenas de fuzileiros armados com armas de repetição, obuses e morteiros capazes de disparar em pouco minutos rajadas de chumbo e dezenas de granadas explosivas que destruíriam qualquer forte medieval que se lhe opusesse, como eram os que rodeavam a colónia portuguesa e defendiam a “Boca do Tigre” embocadura do Rio das Pérolas.

A Espanha faria o mesmo, como de facto fez, embora com um atraso de quase seis anos) enviando para o arquipélago filipino, igualmente, o melhor que tinha em termos de poderio naval consubstanciado no primeiro navio de guerra a vapor e casco de ferro sob o comando do almirante José Malcampo Monje. E certo é que assim foi.

A facção redentorista portuguesa enviou para Macau as jóias da sua marinha, ou seja a “Corveta Íris” e a “Fragata D. Maria II”.

Só que desígnios políticos mal sustentados raramente surtem efeitos e foi o que aconteceu.

Os redentoristas certos de que a China se encontrava na ultima das depressões da sua história esqueceram-se de que na conjuntura global do tempo, as únicas forças militares credíveis eram as das grande potências e Portugal estava longe de se encontrar entre elas, tal como a Espanha. Mas esta constatação é apenas um parêntesis.

O que aconteceu a seguir foi que, depois da luz verde política de enviar expedição militar para Macau, cumprir os traçados do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Lisboa em consonância com Madrid se revelou missão impossível.

O comandante da Corveta “Íris” ancorada no Rio de Janeiro, recebidas as ordens para rumar para a China fez o que pode, mas depois de ter zarpado e a poucas milhas de rumo não teve mais do que reconhecer a impossibilidade de continuar por deficiências técnicas. O navio não estava, de todo, em condições de se fazer ao mar para tão longa distância. Por isso não houve remédio senão o de “dar à ré” e rumar de novo ao socorro do porto das ilhas brasileiras de S. Paulo para reparações porque estava a meter água. Perante todos esses contratempos a “Íris” acabaria por chegar a Macau muito fora do calendário da missão que lhe estava destinado, tal como a “Corveta D. João II” mandada zarpar de Goa com uma companhia de “cipaios”, mas que, igualmente, não chegou a fazer junção em tempo útil.

Quanto à soberana fragata “D. Maria II”, partida de Lisboa, a viagem decorreu sem incidentes e no tempo previsto até arribar a Macau onde ancorou no porto da Taipa, mais, ou menos no local onde actualmente se encontra a embocadura da “Ponte de Sai Wan”.

A soberana fragata D. Maria II destruída em 1850 por um atentado no porto da Taipa em Macau.

A tripulação da “D. Maria II” que vinha preparada para a guerra manteve-se no interior do navio desembarcando apenas alguns oficiais encarregados de levar despachos ao Governador e meia dúzia de doentes que careciam de tratamento. O resto da marinhagem permaneceu a bordo.

Subitamente porém sem que nada o fizesse prever no dia 29 de Outubro de 1850, dia de “mornaça” como se diz no calão da marinha e quando se celebrava o aniversário da rainha que dava nome à imponente embarcação o Mundo explodiu com a fragata.

O fragor foi tão forte que os vidros das janelas das casas da Baía da Praia Grande em Macau, do outro lado do canal, a mais de dois quilómetros de distância, se estilhaçaram.

Fotografia que ilustra a distância entre o porto da Taipa de 1850 e a cidade de Macau. Esta ponte “Nobre de Carvalho” tem 2.400 metros de amplitude. A explosão registou-se à esquerda da ponte, ou seja a quase 3 quilómetros de distância. Por esta ilustração se pode calcular a força da explosão da Fragata D. Maria II que quebrou os vidros das mansões da Baía da Praia Grande de Macau do outro lado do canal do Delta do Rio das Pérolas

O imponente navio de velas alçadas soçobrou em minutos.

Em torno dele, igualmente se repercutiu o desastre.

Uma fragata francesa, pela força da explosão, perdeu todo o velame e registou entre a tripulação mortos e feridos. Um brigue inglês que ao lado descarregava ópio sofreu, igualmente, um número indeterminado de vítimas em quantos marinheiros se encontravam no convés. Milagrosamente a corveta americana ”Marion” que se encontrava ainda mais perto do que os outros, como por milagre, quase nada sofreu e foi a primeira a enviar socorro, ainda que já nada houvesse a socorrer. Estava tudo perdido e reduzido a tábuas fumegantes e informes que boiavam nas águas. Nem sequer cadáveres havia a recuperar.

Mas o pior de perdas em vidas foi o que se registou entre homens e mulheres dos inúmeros juncos e tancares que, nesses tempos constituam uma espécie de mercado flutuante que girava em torno dos grandes e inúmeros navios que ancoravam na Taipa. Morreram todos, ou quase todos, nas pequenas embarcações que manobravam na feira permanente que era o Porto da Taipa nesse tempo.

De entre esses, o número de mortos e feridos nunca se soube ao certo, nem ficaram registados oficialmente. Para todos os efeitos eram anónimos carentes de cédula de identidade, mas terão sido o dobro dos perecidos na fragata e nos outros navios estrangeiros que a rodeavam. Ao todo, cálculos feitos, sem estatísticas, o número de vítimas mortais terá ascendido a mais de meio milhar.

Diz-se que o atentado foi inspirado pela “Sociedade dos Rios e dos Lagos”, uma “tríade” cujos iniciados eram, essencialmente, militares do exército da China e que teriam aliciado numa das várias tabernas do “ Bairro do Monte” (adjacente ao que é hoje conhecida como “Rua das Mariazinhas”) um dos tripulantes da “D. Maria II” para a fazer explodir. Se foi assim o aliciado terá sido precursor, em mais de duzentos anos dos terroristas suicidas de que estamos habituados a ouvir falar nos telejornais dos dias de hoje. O suspeito era um primeiro grumete, fiel da pólvora, alcoólico e conhecido por relapso em matéria de disciplina militar, moral e cívica.

Segundo relatórios oficiais, no dia seguinte a ter sido castigado por mais um acto de desobediência, perante toda a tripulação da Fragata, terá descido ao porão e posto fogo ao paiol. Morreu no acto e por isso o inquérito que se sucedeu ficou privado de uma testemunha (ou réu) essencial, para contar a verdadeira história. Os outros pereceram todos no desastre.

Neste contexto de mistérios atrás de mistérios acresce ainda um outro que vale a pena transcrever dos jornais portugueses da época e é o seguinte: – “ pela mala chegada em Outubro (a Macau) recebeu um dos oficiais da fragata o falecido e de todos lastimado tenente Luís Maria Bordalo (oficial da tripulação), uma carta de Lisboa de seu irmão, em que lhe dizia que naquela capital corria a notícia, de ter voado com uma explosão a “Fragata D. Maria II” carta que por esta singularidade o dito oficial mostrou a alguns dos seus camaradas, e hoje se acha em Macau o cavalheiro que a escreveu, que é o actual secretário do Governo (Francisco Bordalo), que plenamente confirma o facto.

Na verdade é bem extraordinário falar-se em Lisboa de um sucesso que nada tem de comum e que só daí a dois meses se viria a verificar de facto a 3.600 léguas de Lisboa”.

Que estranha e ominosa missiva!…

A catástrofe custou a vida a 191 membros da tripulação da Fragata.

Os poucos que se salvaram foram 36 tripulantes que se encontravam na cidade. Uns por doença, internados no Hospital Militar de S. Rafael, outros de licença e outros ainda em serviço de estafeta.

Também o filho, criança, do comandante da “D. Maria II”, Francisco de Assis e Silva (igualmente vítima mortal do desastre) que viajava a bordo se salvou pelo facto de ter ido a terra, singularmente, por sugestão, do próprio marinheiro, fiel da pólvora, a quem foi atribuído o atentado. Porque razão o comandante terá dado ouvidos a um dos menos graduados e mais indesejáveis dos seus tripulantes acedendo a desembarcar o filho? Outra interrogação insondável a somar a um episódio que permanece desde então rodeado das mais negras sombras.

Creio que o mistério da explosão da mais imponente fragata portuguesa do século XIX e a verdade do drama nunca será verdadeiramente esclarecida a não ser nos romances que o irmão do malogrado tenente Bordalo (Francisco Maria Bordalo) deixou escritos e que jazem, mais ,ou menos ignotos no pó das estantes da Biblioteca Nacional de Lisboa e na Torre do Tombo e mal constam da história da literatura portuguesa.

Creio que neste caso a verdade nunca virá a ser conhecida mas apenas a nossa imaginação poderá deixar campo a quem queira pegar no tema e fazer dele uma novela baseada em factos autênticos como se diz nos filmes de ficção, ou nas telenovelas.

Responder ao dogma novo como Cambrone aos ingleses 22-02-11

A luta contra os monopólios, bem aos contrários do que se possa pensar não é uma invenção republicana radical e muito menos marxista-leninista, ainda que esta corrente de pensamento tenha tido sempre como bandeira, ou inimigo principal, os ditos.

Não! a luta contra os exclusivos de mercado constitui apenas uma decorrência normal da evolução do sistema capitalista desde finais do século XVII (Já me referi a esta questão em anterior artigo, mas agora desenvolvo um pouco mais o tema por pensar que merece).

O capitalismo americano adoptou a sigla “abaixo os monopólios” e integrou-a como lema ideal de estado e aí a temos desde há mais de um século a botar sentença condenatória sempre que empresa se torna notada por açambarcar maior fatia de mercado do que lhe competiria perante as regras da livre concorrência. As últimas e mais notadas são as petrolíferas e as empresas de informática, “hardware” e “software” entre as quais avultam, naturalmente a “Apple” e a “Microsoft” entre muitas outras (neste momento não sei se estou a infringir os campos de “expertise” de Albano Martins que nas páginas deste mesmo “JTM”, tão bem discorre, sobre os mais diversos campos das ciências económicas e financeiras aplicadas à RAEM, como mestre nesses assuntos que é.

Bom!… Seja como for assumo o risco.

Apesar de todos e eventuais defeitos do capitalismo, diga-se que lutar pela equidade em matéria de concorrência leal é um princípio salutar (tanto ontem como hoje) que os vigilantes do jogo capitalista “sério” se esforçam por fazer cumprir.

No Extremo Oriente temos um exemplar exemplo (passe a redundância), quando na primeira metade do século XIX  a “Real Companhia Britânica das Índias Orientais” acabaria por ser extinta, depois de décadas de reinado absoluto,  já que Londres assumiu, que mais do que contribuir para a expansão do comércio britânico a Oriente, a “Honorável Companhia” acabava por condicionar a livre iniciativa dos comerciantes ingleses que nela se integravam e que só através dela podiam exercer actividades na China.

O tempo das companhias majestáticas tinha tido a sua era e finou-se inglória nessa época. Apesar disso a persistência dos monopólios manteve-se irredutível em Macau.

É interessante recordar que ao longo dos tempos, Na então colónia, tudo eram monopólios: – desde o comércio do ópio, ao tráfico dos “cules” (emigrantes que eram compulsivamente recrutados e enviados, para a América do Sul como trabalhadores nos campos de cana de açúcar, algodão, ou construção dos caminhos de ferro na América do Norte) até ao comércio do sal, passando pela recolha de “matérias fecais” (resíduos sólidos como se diria hoje), iluminação pública (primeiro a azeite, mais tarde a gás e, mais tarde ainda a energia eléctrica) distribuição de água potável e finalmente o jogo.

O último dos grandes monopólios foi exactamente o do jogo que reinou em mãos exclusivas durante quase um século até em 2004 quando a “STDM”, depois de quase quatro décadas de exclusivo ter sido finalmente extirpada dessa condição abrindo-se o sector à livre concorrência.

Um decisão, que para alem de estar alinhada com os princípios da Organização Internacional do Comércio (OMC) se revelou a mais acertada.

A recente “escandaleira familiar” do “clã Ho” revela à saciedade a perigosidade dos monopólios que, desde sempre, umas vezes, claramente visíveis, outras, encapotadas em diversos artifícios jurídico-legais chamados “holdings”, “off-shores” e outros “palavrões”  constantes do vocabulário das ciências económicas têm comandado a vida de Macau e, afinal de contas, do Mundo inteiro.

De facto se a antiga “STDM” ainda detivesse o monopólio do jogo em Macau, a questão judicial das partilhas familiares que nestes últimos meses tem vindo a público diariamente, para Macau, não se resumiria a uma perda pontual de alguns milhares, ou milhões de patacas em acções de bolsa, ou taxas e impostos a pagar. Não! muito pelo contrário! poderia ser um problema político capaz de pôr em causa o futuro do território, tendo em conta que nos seus tempos de monopólio a “STDM” era o maior empregador e investidor e a asserção de Stanley Ho dizendo que “o que era bom para a “STDM” era bom para Macau” não era figura de retórica, mas de facto, sentença patente, definitiva e sem contestação.

Actualmente, a perda de uns quantos por cento nas cotações do mercado da sucedânea da monopolista “STDM”, como disse antes, pode representar prejuízo individual para a família Ho, mas fica longe de pôr em causa os fundamentos económicos da RAEM.

No entanto e apesar de estarem no terreno outras empresas, actualmente tão, ou quase tão poderosas, como o era a antiga “STDM” ao Governo compete estar atento, para que uma etapa ganha contra os monopólios não possa ser inviabilizada por um trica de família (ou de clã) que pode trazer escondida uma tentativa de restabelecer um “status quo ante” indesejável que poderia fazer transgiversar inexoravelmente o caminho de sucesso baseado na livre concorrência que a “RAEM” trilha desde o dito ano de 2004. Isto, ainda que não se saiba ao certo se os requisitos da “OMC” estejam, ou não a ser escrupulosamente cumpridos em Macau (mas isso serão assuntos de tese para juristas e peritos em direito internacional).

Em minha opinião temos tido, pelo menos por agora, livre concorrência.

Isso é um facto, ainda que haja quem entenda que as quatro licenças de jogo são poucas e a área deveria ser totalmente liberalizada. Não me parece, no entanto, que isso trouxesse quaisquer benefícios adicionais. Os estado e os governos precisam, afinal, de manter algum controlo sobre o que governam e fragmentação excessiva, ou lassidão complacente, conduzem apenas a situações como as que actualmente se patenteiam no sector bancário, nas relações comerciais globais, ou nas especulações bolsistas do mundo económico-financeiro por alheamento dos estados que parecem ter redescoberto e posto em prática o anacronismo de David Ricardo e o seu liberal  “laissez faire, laissez aller, laissez passer“.

O capitalismo ganhou, quando o Muro de Berlim Caiu na noite de 9 de Novembro de 1989. Mas essa simbólica noite libertária não significa, para o futuro, que as teses radicais do liberalismo tenham triunfado (pelo menos definitivamente). A sentença latina:- “In medio consistit virtus” (no meio é que está a virtude) ainda continua a ser advertência a ter em conta desde o Império Romano de há dois mil anos até aos dias de hoje.

Por muito que custe aos anarquista, aos liberais sem freio e aos radicais de direita sem ideologia definida, o conceito de Estado moldado pelos teóricos da “revolução Francesa” não caiu com o Muro de Berlim. Bem pelo contrário. Acho eu!

Diria aqui que o “bom senso do povo respondeu ao dogma novo como Cambrone aos ingleses” parafraseando o grande poeta luso Guerra Junqueiro.

E sabe-se que o que disse “Cambrone” não foi nenhuma frase exemplar como a dos grandes vultos da história e da literatura, nem falou em latim.

Perdida a batalha de Waterloo o general, sozinho, depois de ter visto tombar, um, a um, os seus soldados, cercado pelas espingardas, canhões e lanças de toda a Europa, sem mais homens para combater, limitou-se a arremessar,  em acto pragmático perante as circunstâncias a espada fora que , em arco voou e se enterrou na lama da planície belga da sua derrota inerme e impotente. Ele, perante batalhões, num momento crucial da humanidade.

Ele, Cambrone, não se rendeu, nem era preciso (era general sem tropas derrotado militarmente no campo de batalha, mas não no das ideias). Limitou-se a dizer alto e bom som um desalentado palavrão: – “Merda”… Foi o que disse e o que ficou na história por alturas de uma derrota negligenciável e conjuntural de um Mundo que marchava inexoravelmente para o futuro.

Haja banqueiros, capitalistas e homens de bem que honrem a memória dessa figura moral, que em vez de fazer épico “haraquiri”, em nome de nada, optou apenas e racionalmente por conceder circunstancial, realística, impositória e momentaneamente uma vitória de “Pirrro” a quem tinha mais força de momento.

Que é que tudo isto tem a ver com Macau? Tudo e nada. Depende do ponto de vista e como diziam os Sociais Democratas (Bolchevistas) de 1917 das “relações de forças”.