Guerra, crime e política um “western” de Macau (II) 14-12-10


Num contexto de domínio nipónico absoluto, com a presença de Wong Kong Kit e os seus bandidos, braços armados do coronel Sawa, junto à porta de casa de cada um havia porém e sempre quem recusasse sujeitar-se à força e aos monopólios inimigos da livre concorrência.

Fernando Rodrigues, proprietário da empresa “F. Rodrigues” era um deles. O filho varão do general Rodrigues conhecido como o “pacificador de Timor”, embora longe de alguma vez ter tido jeito para a vida militar, como o pai, dele tinha herdado algumas facetas. Uma delas era a de antes quebrar que torcer em qualquer circunstância. Outra a de não admitir que para além das autoridades constituídas (portuguesas entenda-se) alguém lhe ditasse o que devia, ou não fazer e mesmo assim nem sempre. Igualmente, tinha aprendido, em casa, que ordens, mesmo que genuinamente exaradas e ainda que emitidas no quadro da sua educação familiar, eram para ser cumpridas, apenas, na medida em que não colidissem com os princípios de “Deus Pátria e Família” como dizia Salazar de que todos os seus parentes eram reverentes e reconhecidos observadores. Afinal, ainda que não fosse conde, nem barão, era filho de um general condecorado por feitos em combate. Se não era fidalgo, era filho mais merecido ainda da república, pelo que se considerava à partida não sujeito a quaisquer imposições estrangeiras. Menos monárquicas e muito menos imperiais.

Assim Fernando Rodrigues operava tão livremente quanto podia a sua rede comercial à revelia dos ditames da “CCM”. Os seus circuitos fornecedores provinham essencialmente da Indochina colónia francesa sujeita ao governo de “Vichy”, que apesar, de ter passado a protectorado nipónico, mantinha alguma independência, ainda que mínima e mais formal do que outra coisa. No entanto, permitia que o comércio prosseguisse no Sudeste Asiático independentemente das ideologias.

Essa rota era operada (principalmente) pela seita de Siu Keng Siu (“O Imortal”) que com a sua frota de juncos e um exército de gente que não se sabia ao certo se eram pescadores de profissão, piratas nas horas vagas, ou o contrário de tudo isso, se dizia ter mais de três mil homens sob o seu comando. Em suma uma verdadeira armada.

Essa frota assegurava a chegada regular a Macau de arroz a preços muito mais razoáveis do que os impostos pela “CCM” e essencialmente fora do politicamente indecoroso sistema bloqueio e racionamento imposto pelos japoneses.

Acima do “Imortal” estava Y. C. Liang, operativo dos serviços secretos ingleses com quem Rodrigues, pelo menos aparentemente, ao que se saiba, se dava muito bem. O Governador também com aquele se dava e convivia, embora formalmente tudo fizesse para parecer que não lhe concedia mais crédito público, ou consideração, do que a qualquer outro comerciante de menor importância associado da toda poderosa e veneranda “Associação Comercial de Macau” que pela colónia tivesse estabelecimento aberto. O próprio Pedro Lobo delegado do Governo na “CCS” sabia do que se passava e do mesmo modo fazia ouvidos moucos ao contrabando que singrava, ainda que evidentemente, contra os interesses da própria empresa que oficialmente geria. Porém, neste caso, como noutros, desse intrincado jogo de sombras que era Macau, maiores interesses se “alevantavam”.

Naturalmente que as ostensivas actividades de Fernando Rodrigues se tornaram notadas e o próprio coronel Sawa o advertiu várias vezes. A última advertência que lhe fez foi em pleno cais da Praia Grande, quando Rodrigues assistia ao desembarque de uma grande consignação de arroz. Os mandatários do coronel surgiram inopinadamente no local e declararam que o desembarque não passava de uma acção patente de contrabando. Rodrigues respondeu que quem tinha que classificar o que era, ou não, contrabando, eram as autoridades alfandegárias portuguesas e não qualquer outra autoridade, ainda que legitimada pela força das circunstâncias.

A conversa azedou e redundou numa cena de pancadaria pouco edificante para o prestígio nipónico. Rodrigues (cuja compleição física excedia claramente a dos japoneses que o confrontavam) pôs ponto final na discussão derrubando o oficial comandante e os dois subalternos que o coadjuvavam a murro. Nessa cena de pugilato os militares nem sequer pensaram em usar as pistolas de grosso calibre que lhes pendiam dos coldres. A disciplina militar, em que tinham sido educados desde pequenos, impedia-os de reagir a quente numa situação como aquela. Por isso, “levantaram-se, limparam-se da poeira” e foram-se embora humilhados e ofendidos, mas, acima de tudo, de face perdida.

O caso alcandorou de um momento para o outro o prestígio de Rodrigues para um novo patamar em termos de popularidade geral. No diz-se, que diz, das tertúlias da cidade, era um civil português de punho firme que tinha desafiado, sem medo, um império inteiro, enquanto o próprio Governo que, apesar de tudo, ainda possuía polícia exército e marinha, insistia em manter atitude titubeante que claudicava, sem qualquer assomo de grandeza, que se visse, perante qualquer ordem, ou mera sugestão do arrogante invasor da China e imperial capataz de Macau.

Para as autoridades locais Rodrigues era o contrário, ou seja, uma dor de cabeça que punha em causa um delicado equilíbrio que poderia ser quebrado, com consequências imprevisíveis, mas seguramente fatais, pelo mais ligeiro acto de desafio, ou manifestação de firmeza, que poderia cair bem ao orgulho nacional proclamado pela propaganda do “Estado Novo”, mas que não contribuía, na prática, com o que quer que fosse de positivo para resolver ou minorar a tragédia geral, não passando, por isso de pura e simples insensatez. O que não deixava de ser, também, verdade.

Assim o arroz desembarcado no “Cais da Praia Grande” lá seguiu o seu destino de alimentar as esfaimadas bocas de um território que pouco mais tinha para subsistir no dia a dia do que esse básico alimento.

Porém o caso não se resumiu a uma vulgar cena de pancadaria. Os socos de Rodrigues, que fizeram retirar de modo pouco digno os mandatários de Sawa e a sua escolta mais do que fisicamente terem posto momentaneamente “knok out” uns quantos oficiais japoneses colocaram, de facto, em causa o prestígio inteiro do “Exército de Kuwantung”. Dezenas de pessoas tinham assistido à cena do cais, que existia onde hoje se ergue o centro comercial “Yaohan”, a poucas dezenas de metros da estátua de Jorge Alvares. O próprio cônsul britânico John Reeves da sua residência da Calçada do Gaio, sobranceira à cidade, sorriu, fleumático observando das faldas da Guia o porto onde tudo se passara e telegrafou seguidamente, em cifra, como fazia regularmente, através do seu emissor clandestino, para Chunking, capital da “China Livre”, mais uma pequena vitória da guerra secreta que dirigia contra os japoneses.

Mas, Fernando Rodrigues assinava, nesse local e nesse momento, a sua sentença de morte.

E foi assim que Sawa, no seu quartel de Zhouhai, indirectamente combalido pelos socos do filho do falecido e histórico general, deu ordem para matar à “Seita da Ásia Florescente”, confederação de “tríades” pró japonesas de Guangdong a que Wong Kong Kit pertencia e onde ocupava um cargo paramilitar semelhante ao de major, ou tenente-coronel num exército regular.

Tradicionalmente, na colónia portuguesa muitos circunvertiam a lei,  muitos desobedeciam, muitos faziam contrabando, todos fingiam, mas ninguém tinha, até então, como Fernando Rodrigues afrontado directamente a formalidade vigente e tacitamente aceites desde sempre, fosse na paz fosse na guerra,  pela China, pelo Japão, ou fosse por quem fosse. Muito menos por Macau, a não ser, muito fugazmente, nos quatro anos frontais, de Ferreira do Amaral em meados do século XIX, sem paralelo na história. Formalidades eram e sempre foram formalidades que era necessário observar acima de tudo e de todas as circunstâncias. – Formalidades! – Mais sólidas do que as paredes de granito da Fortaleza do Monte, ou do que os “bunkers” de concreto da Guia. As formalidades eram tão concretas aqui como o cimento armado nos antípodas, ou mais ainda.

Assim Fernando Rodrigues passou a ser um alvo a abater o mais depressa possível, tal como tinha sido meses antes o próprio cônsul japonês Fukui no estertor da derrota do “Sol Nascente”. E assim foi.

Passados dois meses do incidente do cais da Praia Grande, Fernando Rodrigues, a 9 de Julho de 1945, foi assistir ao funeral do Dr. Wong (um conceituado médico local) no cemitério de S. Miguel. Quando saía da cerimónia um dos capangas de Wong Kong Kit disparou sobre ele, à boca do portão de ferro forjado do silencioso campo de repouso dos mortos, vários e estrepitosos tiros de revolver que ecoaram longe. Fernando Rodrigues sucumbiu quase de imediato atingido por seis tiros, tantos quantos o tambor da arma de calibre 45 podia disparar. Morria (ingloriamente?) horas depois, no Hospital Conde de S. Januário, um mês antes da rendição final do Japão.

Vista geral do Cemitério de S. Miguel ao portão do qual Fernando Rodrigues foi assassinado (Foto: – Macau antigo. Blogspot. Com).

O culpado seria capturado quase de imediato graças ao sistema de vigilância que tinha sido implementado pelo capitão Cunha (comandante da PSP) que tinha um dos seus polícias instalado, com telefone, numa arvora fronteira à casa de Wong Kong Kit, para onde o assassino tinha corrido, sem êxito, em busca de refúgio.

Ao ser interrogado em tribunal o homicida diria: – “Não estou arrependido, pois ele era mau; que se ele não estivesse morto e o encontrasse de novo o mataria”.

Este sicário, a soldo, acabaria por ser condenado a 31 anos de degredo em Timor. Não se sabe hoje que sorte foi a sua terminada a guerra.

A sorte de Wong Kong Kit seria pior. Portugal, a China e a Inglaterra não lhe perdoariam os crimes que cometeu.

Na perseguição, captura e execução de Wong Kong Kit teria papel determinante o, tão famoso como enigmático, comissário da polícia Voltaire de Morais

o único homem (que se saiba) a favor do qual Salazar interveio pessoalmente anulando com a sua assinatura de “Presidente do Conselho de Ministros” a sentença condenatória, que o tribunal de Macau tinha lavrado e a relação de Moçambique confirmado, declarando-o criminoso de delito comum. Isto muitos anos depois da guerra (porém esta, é outra história que poucos conhecem, mas que já foi contada).

Voltaire de Morais, não era, nem nunca foi um criminoso de delito comum na acepção vulgar do termo. Terá sido, quando muito, uma espécie de  “Javert” de “Os miseráveis” de Vítor Hugo, imbuído de uma idiossincrasia peculiar e uma forma muito própria de entender os conceitos de bem e mal.

Terminada a guerra Wong Kong Kit fugiu de Macau, mas não escapou à culpa, nem Voltaire de Morais se eximiu à ordem moral que o determinava, nem ao mandato de captura de que tinha sido incumbido pelos tribunais de cumprir. E assim foi.

Depois de uma aventura semelhante às que nas novelas de espionagem Ian Fleming deixou descritas sobre o Extremo Oriente, Voltaire de Morais acabaria por descobrir o paradeiro de Wong Kong Kit, na ilha de Cheung Chau, a poucas milhas de Hong Kong (território inglês). Como o fez e como o trouxe para Macau valerá a pena ser relatado, ainda que não na exiguidade deste artigo (talvez num próximo). Mas certo é que o maior foragido acabaria por ser apresentado ao Juiz de Instrução Criminal algemado pelas mãos do célebre comissário.

Porém, como disse anteriormente, as penas do Código Penal português, ao contrário das leis inglesas de Hong Kong, não contemplavam a pena de morte que Wong Kong Kit obviamente mereceria segundo o direito, então, universalmente aceite.

Assim sendo e para satisfazer a vingança, mais provavelmente do que a justiça, Voltaire de Morais, julgou não ter alternativa, senão a de ser juiz em causa própria como os xerifes dos “westerns” americanos e executou a pena poupando inconveniências aos tribunais. Nomeadamente a possibilidade de uma eventual e escandalosa absolvição por falta de provas. Isto já que, ainda hoje, para além de se repetir que Wong Kong Kit era o mentor de todos os crimes, não resta testemunho nem relatório que o dê como tendo disparado, ele próprio, um tiro sobre quem quer que fosse. Ao contrário subsistem histórias testemunhadas, da sua magnanimidade no auxílio a carenciados e desvalidos (principalmente da seita que liderava) que não hesitariam em comparecer em juízo a atestar o bom comportamento cívico e moral do chefe.

Depois de ter sido ouvido pelo magistrado, Wong Kong Kit, recolheu à viatura prisional escoltado por 4 agentes armados. “Ao chegar à Estrada Adolfo Loureiro… um agente abre-lhe a porta do carro e convida-o a fugir…o homem salta…e é abatido por Morais e Cascais (igualmente Comissário da PSP). Cai o pano. Lavra-se o auto que é arquivado: – malandro tentou fugir…”

No curto tempo de prisão preventiva que cumpriu Wong Kong Kit deixou um testamento escrito em jeito de poema sobre a sua vida e também sobre a sua eventual morte que, pelos vistos, previa como certa. Intitulou-o “ Despedida da Vida” Infelizmente o dito poema não consta dos arquivos judiciais de Macau. O capitão Cunha, que o recebeu das mãos do célebre bandido não o incluiu nos autos que (diga-se) também desapareceram em pó. O capitão guardou-os para si e levou-os para Portugal quando terminou a comissão de serviço em Macau. “Só é pena que o não tenha publicado até hoje” como deixa exarado Monsenhor Manuel Teixeira na única e exígua monografia sobre a guerra que deixou escrita.

O capitão Cunha, Voltaire de Morais e o seu camarada Cascais; “O Imortal”, Gabriel Teixeira, Jack Braga, Menezes Alves, o espião Gardner, o tenente Vieira, bem como o resto dos segredos da guerra, mais os versos de Wong Kong Kit, sumiram-se para sempre com a morte dos protagonistas do drama de Macau na Guerra do Pacífico.

Política radicalismo e demagogia. 07 – 12 – 10

Quando ouço, ou leio que a política é uma “coisa suja”. Os “políticos aldrabões”. Que “é preciso acabar com a classe política” insurjo-me. Mas mais do que me insurgir temo que as vozes vociferantes, ao contrário da dos burros do provérbio, cheguem ao céu. Temendo que tal possibilidade possa ocorrer, para além de me pronunciar fico assustado, porque das últimas vezes, na história, em que vozes que tais “chegaram ao “altíssimo” a coisa deu para o torto e bem mal.

Recordo apenas o fim inglório da “1ª República Portuguesa”. Foi assim: – os políticos alegadamente dominavam a vida nacional cuja constituição fazia residir exclusivamente no parlamento o poder que eleições após eleições davam sempre a maioria ao Partido Republicano (ou Partido Democrático, como se lhe queira chamar) de Afonso Costa. Por muito que custasse a quem queria mudar o estado da coisa política em Portugal o resultado eleitoral era sempre o mesmo e esclarecedor, independentemente da veracidade dos cadernos eleitorais, das “chapeladas” que já vinham de cem anos antes, dos tempos da monarquia, que não tinham mudado nada, ou do enraizamento do caciquismo que igualmente já vinha dos tempos gloriosos da revolução liberal de 1820 e mudado tinham menos ainda.

A certa altura da história houve quem se manifestasse contra um estado de coisas que manifestava eternizar-se. Ou seja contra uma classe política enquistada em Lisboa que conspirava nos cafés querendo alterar tudo, mas, depois, quando rumava de automóvel a S. Bento para ocupar os seus lugares nas bancadas parlamentares, fazia discursos vibrantes, eloquentes, às vezes até às lágrimas, mas não provocava uma pequena onda que fosse no “Mar da Palha” onde os operários do Arsenal faziam muito mais ondulação com as suas pequenas greves que preocupavam de facto mais os destacamentos locais da GNR do que os governadores civis. Muito menos os representantes nacionais.

De facto o país, apesar da retórica parlamentar de Lisboa continuava a ser essencialmente campónio e analfabeto. Portugal, não se tinha alterado um milímetro que fosse no seu desenvolvimento desde que Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858) à beira da cova dissera: – nascer entre brutos, viver entre brutos, morrer entre brutos é triste!…

Quem se revoltou contra o estado de coisas vigente foram os radicais anti políticos, tendo à cabeça o General Gomes da Costa (antigo aluno do seminário de Macau) que pensava que as culpas eram dos tais políticos (desde, porventura, Rodrigo da Fonseca e do general Sepúlveda cabeça de cartaz da revolução de 1820).

O radical Gomes da Costa e os seus próceres igualmente radicais anti-partidos acabaram com a “1ª República”, não numa revolução, mas num desfile militar que em vez de se circunscrever ao perímetro de um quartel qualquer se estendeu, de “passadeira vermelha” e triunfante, através dos mais de 300 quilómetros da “estrada nacional número um” entre Porto e Lisboa (mais os cinquenta e tal quilómetros que se acrescentavam entre a capital do Norte e Braga), com Gomes da Costa do alto do seu cavalo e à frente dos esquadrões a acenar ao povo das freguesias por onde passava a trote rápido como salvador da Pátria.

Gomes da Costa venceu apenas porque Portugal estava farto de promessas mal cumpridas, mas o marechal não acabou com os políticos. Bem pelo contrário. Apenas contribuiu, sem dúvida, para escamotear uns e entronizar piores.

Correu com o primeiro-ministro Afonso Costa que fugiu para o exílio juntamente com o Presidente da república Bernardino Machado. Nos tempos de hoje as coisas seriam feitas de modo diferente, ou seja, nem Bernardino Machado nem Afonso Costa precisariam de ser sujeitos ao enxovalho de serem expulsos da Pátria por ordem de “tribunal militar extraordinário” com sentença condenatória lavrada e publicada. Nos brandos tempos de hoje poderiam ter sido apenas nomeados deputados europeus, ou seja escorridos para Bruxelas ou Estrasburgo, locais onde poderiam continuar a escrever e discursar sem fazer mal a ninguém, nem ninguém notar que continuassem a existir.

Mas os tempos de hoje não são esses tempos, embora a história se repita por muito que se diga que não. E certo é, como dizia, que Gomes da Costa, apesar de toda a sua genuína boa vontade de “endireitar” Portugal acabaria não por acabar com a classe política contra a qual toda a gente tinha queixas, mas por alcandorar ao poder concomitantemente honestos e invejosos, sem cuidar de quem era quem nem ter em conta mais nada. Os radicais nunca cuidaram muito em destrinçar o trigo do joio creio eu.

Mendes Cabeçadas, seu parceiro no golpe, não teve tempo de provar, tal como Gomes da Costa, a sua valia já que, igualmente, seria arredado das rédeas do poder em poucos meses. No entanto, Sinel de Cordes, provou e bem, que não valia nada, ou seja, se os políticos da 1ª República tinham endividado Portugal, como os radicais diziam, o primeiro general da ditadura (não contando Carmona) conseguia fazer melhor ainda, ou seja triplicar a dívida nacional e levar o país ao limiar da bancarrota. Ivens Ferraz que se lhe seguiu igualmente não resolveu coisa nenhuma, e se não levou a proa de Portugal ainda mais a pique foi apenas pelo facto de ser general do exército e não almirante de uma marinha que lutava por manter os seus cruzadores cheios de rombos a flutuar à linha de água.

Perante esse estado de coisas, pode dizer-se que a vez dos radicais chegou ao fim com a ascensão ao poder de Salazar.

Salazar longe de ser um radical anti-político era a sua antítese. Entendia que o segredo do futuro residia na máxima de Maurras: – “politique d, abord”. Por isso, se encarregou de correr com o que restava dos radicais no processo revolucionário do 28 de Maio de 1926 incluindo Rolão Preto, o chefe dos “camisas azuis”, cujo destino, ainda que inopinado, pelo facto de ser um dos principais apoiantes do ascendente ditador civil e das suas concepções de “estado Novo”, acabaria igualmente por ser igual ao dos outros, ou seja, preso e banido juntando-se no olvido político a Gomes da Costa, Cabeçadas, Sousa Dias, Agatão Lança e sei lá mais quantos.

Depois disso e de ter pacificado a vida política nacional, Salazar fez o que não se esperaria, ou seja, em vez de manter a ditadura militar anti partidos criou um sucedâneo de sinal oposto ao “Partido Republicano”, que vinha conduzindo a vida política portuguesa das últimas duas décadas. Chamou-lhe “União Nacional” e pronto.

Salazar acabou com os radicais sem verdadeiramente inaugurar uma nova era. Afinal a “União Nacional”, expurgada de alguns nomes mais sonantes que não convinham à nova situação, não deixava de ser um sucedâneo dos ministérios de fusão que desde os tempos de Costa Cabral (1848) se tinham alternado nos governos de Portugal

Mas o que é que tudo isto tem a ver com Macau perguntarão os leitores? E eu respondo: – nada, ou talvez tudo e explico rememorando um pequeno aparte que ouvi, lá vão anos, do então chefe do Executivo Edmundo Ho, que a propósito não sei bem já de quê, dizia que na Assembleia Legislativa faltava um partido de apoio ao Governo ao contrário de Hong Kong onde os partidos existem.

É verdade, pensei, na altura. E continua a ser. Faltam partidos, ou grupos organizados, ou coisa que se lhes assemelhe. Por esse facto, a vida política local continua a estar essencialmente assente no individualismo anómalo que inevitavelmente acaba por resvalar para o radicalismo, nuns casos. Noutros, para a pura e simples demagogia inconsequente.

Ou seja, os deputados, independentemente de serem eleitos por quem sejam, não obedecem a ideário político realmente fundamentado. Serão capazes de defender bem as posições de quem os nomeou, mas estão longe de as defender de um modo ideológico. Uns e outros poderão, aqui e ali, salientar pontos de grande interesse público. Poderão fazer, aqui e ali, discursos eloquentes. Poucos, até hoje puxaram, que me lembre, lágrima emocional decorrente da oratória ao cidadão comum (como nos tempos antigos da 1ª República Portuguesa” acontecia e não poucas vezes) sobre grandes questões.

O deputado de Macau Velhinho Correia nos anos 30 do século passado tinha o condão de o fazer junto da comunidade portuguesa, enquanto, umas décadas antes Chen Shaobai tinha feito o mesmo nos comícios republicanos arrebatadores levados a efeito nos cinematógrafos da cidade entre a população chinesa.  Mas ideário certo?

Poderemos reconhecer, actualmente, no senhor deputado “tal” um Marxista-leninista? Poderemos entender nos discursos do senhor deputado “X” um apóstolo de Mao? Encontraremos no discurso do senhor deputado “Y” alguns pontos fundamentais da “Democracia Cristã? Poderemos subentender alguns princípios postulados pela social-democracia de Bernstein no senhor deputado “H”? Teremos entendido nas palavras do deputado “Z” a filosofia dos “três princípios do povo de Sun Yat Sen”? Poderemos inferir do que disse o senhor deputado “U” um subscritor das máximas de Milton Friedman? Não! da cacofonia política local não se pode subentender mais nada do que o que é e está patente, ou seja um conjunto de vozes independentes entre si que fazem e dizem o melhor que podem e sabem sobre os assuntos correntes de Macau. Sendo assim e tendo em conta que a AL não é de facto um parlamento nacional, o mais a que a poderemos associar é à antiga “Câmara Corporativa” do “Estado Novo”, onde organizações patronais, sindicais e grupos de classe se exprimiam, sem esperarem seriamente que os seus discursos (mais ainda do que os seus pareceres) tivessem qualquer efeito nos resultados políticos práticos da governação.

Será no entanto tudo isto razão de queixa essencial contra a classe política que temos? Claro que sim e claro que não!

Que sim porque “já não nascemos, nem vivemos e não esperamos morrer entre brutos”, como dizia Rodrigo da Fonseca há duzentos anos. Esta é uma verdade que se aplica tanto no Extremo Ocidental Europeu, como no seu oposto Asiático.

Não, porque ainda vamos ter que esperar (estou convencido pelo que tenho visto e ouvido até agora) largos anos até ouvir falar na Al. um verdadeiro tribuno líder de uma autêntica bancada parlamentar.

Apesar porém de todas as eventuais carências, em Macau, como no Haiti, EUA, Japão, ou Vanuatu, recuso-me, seja em que circunstâncias forem, a colocar epítetos pejorativos sobre quem se dedique à política, mesmo que não a tempo inteiro.

Na política, como em qualquer outra profissão é apenas o seu bom exercício, baseado em princípios, que determina a honradez de quem a pratica. Infelizmente na actual conjuntura o principal protagonismo pende naturalmente mais para os radicais sobrevalorizando a demagogia inconsequente e menos para os políticos profissionais que se o são “de jure” carecem ainda de suporte de facto.

Ainda bem que o radicalismo que resultou no longínquo 28 de Maio de 1926 nunca teve nada a ver com Macau. Nem ontem, nem hoje. No entanto tal como Zheng Kwan Yin (1842-1921) deixou para a posteridade da China as suas “Advertências Severas em Época próspera” talvez a recordação do episódio com que iniciei este artigo, situado em Portugal, geograficamente posicionado quase nos antípodas e numa conjuntura particular que de nós dista quase um século, tenha algum valor para os dias que correm. Quanto mais não seja o valor moral e inocuamente universal que têm, por exemplo, as fábulas de Esopo, ou La Fontaine.

PS. Tinha prometido concluir o episódio da guerra esta semana, mas tendo em conta o debate das “Linhas de Acção Governativa” na AL, este “aparte” pareceu-me mais adequado. Concluirei o que prometi em os “Sinais” da  próxima terça-feira.

Guerra, crime e política: – Um “western” de Macau (I) 30-11-10

Apesar de toda retórica sobre a invencibilidade do exército e da marinha imperiais comprovada pela sucessão de vitórias em todo o Extremo Oriente, os estrategas japoneses sabiam bem que ocupar militarmente a China era tarefa impossível. Daí terem desenhado um plano de ocupação efectiva das regiões norte do país contíguas à Coreia (então colónia japonesa) base a partir da qual o chamado exército de Kwantong se encarregaria de lançar uma ofensiva para Sul destinada a apossar-se dos principais portos chineses, desde Tientsin a Xangai, passando por Cantão, Hong Kong até à ilha de Hainão.

Esta estratégia permitia a Tóquio garantir a impossibilidade de reabastecimento das províncias interiores, dificultando, ou teoricamente bloqueando, a possibilidade de auxílio dos Estados Unidos e Inglaterra ao exército nacionalista comandado por Shiang Kai Chek totalmente colocado na defensiva perante a trituradora máquina militar nipónica.

Este plano cuja execução se iniciou com pleno vigor em 1937 foi cumprido obrigando o governo chinês a abandonar Pequim e sedear em Chunking (muito mais a Sul) a sua capital política. Este movimento estratégico obrigou as forças aliadas a abrirem vias de comunicação de emergência através das províncias meridionais chinesas confinantes com a Birmânia (então colónia inglesa) único ponto através do qual o exército do generalíssimo nacionalista se passaria a poder sustentar.

Esta resposta ocidental levaria o Japão, numa fase posterior da guerra, a ter que estender a sua campanha mais para Sul da Ilha de Hainão visando a Malásia e a actual Indonésia que passavam a constituir, depois de aberta a estrada da Birmânia (“Burma Road”), os únicos pontos extensamente vulneráveis do cerco da China.

Eventuais planos de invasão da Austrália parecem ter estado desde sempre fora de qualquer pensamento estratégico dos generais de Tóquio. A Austrália, pela sua dimensão geográfica gigantesca seria, tal como a China, caso a ter em conta muito mais tarde e bem mais pelos diplomatas do que pelos generais. A ocupação de Timor não passou por isso de um episódio táctico de ordem puramente militar em resposta a um inadvertido passo de Camberra.

D. Aleixo Corte Real, régulo de Timor, herói

e mártir na luta contra a invasão japonesa.

(1886-1943).

(foto retirada de – imagemcomparativa.blogspot.com)

 

A estrada de “Burma” tinha ao todo 1,154 km de extensão e serpenteava através de regiões montanhas em terreno particularmente difícil. A secção entre Kunming e a fronteira birmanesa foi construída por 200,000 trabalhadores chineses, a pá e picareta, durante a chamada “segunda guerra sino-japonesa” em 1938. A sua utilidade seria confirmada pouco tempo mais tarde quando os ingleses e americanos a passaram a usar para o transporte de material de guerra, mas não só, para a chamada “China Livre”.

Se a ofensiva nipónica de cerco pelo “Sudeste Asiático” tivesse sucesso toda a China, mais tarde, ou mais cedo, se renderia sem necessidade de empenhar milhões de homens em expedição duvidosa sobre imensidões continentais. Seria, os japoneses sabiam bem, uma expedição semelhante à campanha napoleónica contra a Rússia, nos inícios do século XIX. Tal como ela o mais provável é que redundasse no mesmo fracasso. Porém os estrategas militares de Tóquio não ignoravam os quês e porquês dos desaires de Napoleão um século antes. Nesse contexto, para além de Singapura, bem mais a Sul de Hainão e pelas razões aduzidas, dois Portos da China apenas se interpunham à concretização completa do bloqueio continental:- Hong Kong e Macau.

Quanto à primeira a questão ficaria resolvida já que com a aliança Germano nipónica os ingleses passavam a ser inimigos o que justificou o ataque e ocupação da colónia britânica. Uma ocupação que se verificou em poucos dias sem apelo, agravo, ou resistência capaz por parte dos exércitos da Grã-bretanha, o que para estes constituiu umas das maiores humilhações da sua história imperial.

De facto depois de mais de um século de propaganda de invencibilidade marítima dois dos mais míticos vasos de guerra do almirantado (Prince of Walles e Repulse) enviados para a Ásia para defender a sua presença foram a pique quando mal penetravam no teatro de guerra do Pacífico.

Cruzador britânico HMS Rpulse. Afundado pela marinha japonesa no dia 10 de Dezembro de 1941.

Hong Kong e Singapura propaladas como fortalezas inexpugnáveis pereciam, quase simultaneamente, em poucos dias face ao exército do imperador Hirohito. Que era feito das estrofes do hino: –  “rule britannia rule above the seas”? Nada!

Ficava a restar Macau colónia de um país neutral que apesar da sua exiguidade geográfica e quase ausência de meios militares de defesa não podia ser ocupada à luz do direito internacional e teria de ser tratada de modo diferente.

Nesse aspecto os japoneses cumpriram formalmente, ainda que de modo pouco escrupuloso, os requisitos de neutralidade.

O exército de Kwantong, depois de ocupar as ilhas da Lapa, D. João e Montanha, todas elas reivindicadas por Portugal (onde existiam destacamentos policiais permanentes portugueses havia muitos anos, mas que eram territórios possuidores de estatuto internacional indefinido), parou junto às Portas do Cerco.

Para o interior da fronteira de Macau o papel protagonista caberia pelos quatro anos seguintes não às divisões de linha do exército, marinha e força aérea, mas sim aos departamentos de inteligência  e polícia militar dos três ramos das forças armadas mas principalmente à “Kempentai”, os serviços secretos do exército de sua majestade imperial. Estes para além da espionagem e contra-espionagem tinham como missão garantir, por um lado, que os circuitos de abastecimentos de bens essenciais para a população civil e militar (tropas nipónicas e chinesas aliadas, entenda-se) permaneciam exclusivamente em mãos amigas. Por outro lado, que Macau beneficiando do seu estatuto de neutralidade não se constituísse em base de apoio, contrabando, centro de informações estratégicas e sabotagem ao serviço da “China livre”.

Esta situação levou a que o Japão impusesse a elevação do estatuto do seu cônsul, Fukui Yasumitsu à condição de conselheiro especial do Governador de Macau, com poderes que claramente extravasavam os de um mero representante diplomático de um país estrangeiro. Aliás é curioso notar, neste ponto da história, que, nas listas oficiais de dirigentes mundiais oficial e internacionalmente publicadas, Macau ainda conste, como tendo sido, nessa época, um protectorado japonês e o cônsul Fukui Yasumitsu um super administrador a que o Governador (Gabriel Maurício Teixeira) estaria de facto sujeito como efectivamente esteve. Será uma incongruência que até hoje não foi corrigida, ou corresponderia a uma situação real? Responder a esta pergunta depende da consulta de documentação dispersa por diversas chancelarias de vários países muita da qual ainda permanece inacessível e protegida pelos carimbos vermelhos que a dão, apesar de já lá irem mais de seis década e meia, como secreta.

Concomitantemente com o cônsul, o comandante da “Kempentai”, coronel Sawa tornava-se efectivamente uma espécie de chefe sombra da Repartição dos Serviços de Economia de Macau, ainda que formalmente a sua liderança pertencesse a Pedro José Lobo.

Esta anómala situação levou à criação de uma empresa monopolista denominada “Companhia Cooperativa de Macau” (CCM) de que o governo português possuía um terço das acções. O outro terço pertencia ao exército japonês e o restante estava distribuído por várias famílias ricas, entre as quais se incluíam nomes como os de Sir Robert Ho Tung e outros grandes magnatas de Hong Kong que no limiar da ocupação da colónia britânica tinham transferido os seus negócios e os seus bancos para a colónia portuguesa do outro lado do Rio das Pérolas.

Como delegado do Governo Pedro José Lobo geria “oficialmente” essa empresa que, na verdade, em vez de obedecer às directrizes políticas do governo de Macau obedecia isso sim e muito mais, aos objectivos politico-militares nipónicas de controlo dos principais bens de primeira necessidade – o arroz era o principal, mas outros havia não menos importantes.

Quem esclarece esta situação é Stanley Ho que através de seu tio (Sir Robert Ho Tung) conseguiu uma colocação de certo destaque na emergente “CCM”: – “o governo português entregava-nos tudo o que podia. Navios, equipamento de comunicações, ou seja o que havia capaz de render alguma coisa. Tudo isso era entregue aos japoneses em troca de arroz, feijão, azeite, açúcar, enfim todos os bens essenciais, já que o governo de Macau não tinha recursos para acorrer às necessidades da população”.

Macau estava inexoravelmente sujeita a cerco semelhante ao dos antigos castelos da idade média e ao contrário da analogia nem sequer possuía azeite ou alcatrão para lançar sobre quem lhe assediava as muralhas!…

Apesar porém da existência da “CCM”, certo é que esse monopólio oficial não decorria de uma acção espontânea e natural dos mercados, mas sim de um imperativo bélico.

A “CCM” satisfazia os grandes comerciantes e especuladores que a curto prazo lucravam com a guerra sem olhar a nacionalidades, ou ideologias, mas apenas estes. Ao governo de Macau, por seu turno, permitia acorrer às inúmeras necessidade de uma população que tinha crescido exponencialmente com o constante afluxo de refugiados que surgiam de toda a parte. Dar de comer às pessoas era essencial. Todos os dias se recolhiam pelas ruas cadáveres vítimas da fome, frio, inanição, ou simplesmente do facto de viver se ter tornado fardo demasiado pesado para quem chegava sem nada e não via futuro em nada. Se alguém lucrava ilicitamente com os estratagemas adoptados para salvar vidas e como é que com isso se lucrava era a menor das interrogações para as autoridades de Macau.

Macau: Distribuição de arroz durante a guerra.

(Macauantigo-blogspot.com)

Impedido pelas convenções internacionais de manter em solo macaense a sua “gendermerie” o coronel Sawa, chefe da “Kempentai” recorreu naturalmente às ancestrais seitas que em Macau passaram sob as suas ordens a desempenhar funções de certo modo semelhantes às que em Portugal desempenhava a “Legião Portuguesa” (LP) por esses tempos.

Assim os elementos das seitas, tal como os da “LP” na longínqua “Metrópole” eram polícia de segurança pública, oficiais de alfândega e braços executores dos serviços de inteligência chinesa do governo fantoche e colaboracionista de Weng Ching Wei aliado dos japoneses que mandavam tanto, ou em certas circunstâncias mais ainda do que as instituições oficiais e legalmente estabelecidas. Ou seja vivia-se um tempo de inextrincável confusão. Um tempo de excepção em que um revólver empunhado por mão anónima fazia valer melhor a autoridade do que qualquer “crachat” de polícia, ou mandato judicial. Nesses tempos incorrer em crime de desobediência à autoridade dependia apenas da qualidade de quem desobedecia, mas de modo algum de qualquer artigo do Código Penal, por mais evidente que o flagrante delito fosse.

O comandante de um dos mais importantes destes corpos (se é que se pode chamar assim), actuantes em Macau (onde actuavam outros de outros quadrantes, umas vezes opostos, outras circunstancialmente aliados, “nem sempre todos, nem sempre os mesmos” como rezavam os autos de polícia), era Wong Kong Kit, um criminoso de delito comum que tinha quartel-general numa casa da avenida Coronel Mesquita e residência noutra da Ouvidor Arriaga. Esta defendida por sacos de areia e metralhadoras pesadas numa réplica (ainda que em menor escala) do quartel-general de S. Francisco.

– “Wong Kong Kit foi o verdadeiro Clyde de Macau durante a II Guerra Mundial. Era um sujeito de voz activa que tinha um complemento directo na pessoa de sua Madame Bonnie ilustre costureira, cujas mãos sanguinárias em vez de manusearem a agulha em delicadíssimos bordados empunhavam dois revólveres, que ela podia disparar tanto da esquerda para a direita como da direita para a esquerda(…) Estes dois “gangsters” apareceram por encanto na nossa fronteira e estabeleceram a sua firma  Bonnie and Clyde sob a superintendência da gendermeria japonesa (…) qual o negócio? Espionagem, pressão contra o governo português, fiscalização de arroz importado da China, impondo uma taxa sobre ele. Quais os meios com que contava? Ele transitava pelas ruas em 2 automóveis com 8 homens armados de pistola “Mauser” e revólver de calibre não inferior a 38. Tinha apoio da gendarmeria japonesa sob o comando do coronel Sawa”. Quem isto diz é Monsenhor Manuel Teixeira que viveu os acontecimentos e os deixou escritos em “sumido” trabalho monográfico que mal consta da sua bibliografia.

Deste homem, viremos a encontrar bem mais recentemente uma versão moderna, ainda que muito menos poderosa durante a chamada “guerra das seitas” que antecedeu o período de transição de soberania de Macau para a RPC, e que teve o seu auge em 1997, no peculiar “Tai Ko” Pan Nga Koi, que actualmente cumpre longa sentença judicial em prisão de alta segurança.

Todavia, entre Vong Kong Kit e Pan Nga Koi as semelhanças terminam no facto de ambos serem essencialmente exibicionistas, fanfarrões e chefes de “seita”, para alem, naturalmente de criminosos de delito comum, sem qualquer ideologia. Quanto ao resto, as circunstâncias não têm paralelo. O primeiro era um “gangster” apoiado oficialmente por um Estado ocupante e imperialista.

O segundo era “gangster” do mesmo jaez, que chegou a encerrar uma das pontes de Macau contando com espúrias cumplicidade apenas para participar num cena de filme, por si próprio patrocinado, passeando-se por ela com uma coluna de carros repletos de guarda-costas que não passavam de actores. O “Tai Ko” dos anos 90 não era uma réplica de Wong Kong Kit, mas apenas alguém que pensava que sim, que era apoiado fosse por quem fosse, que estava acima da lei

A diferença era abissal e foi determinante nos seus diferentes destinos. Pan Nga Koi, por mais poderoso que se julgasse nunca esteve acima do estado de direito que o julgou e condenou, nem tinha um poderoso coronel Sawa como protector.

Quanto a Vong Kong Kit o caso era muito diferente. O estado de excepção que se vivia nos anos 40 do século passado era muito semelhante ao das cenas dos “western” americanos. Assim só um justiceiro poderia fazer de facto justiça e foi o que aconteceu. Nesse caso o executor da lei não foi o “herói” John Wayne dos filmes mas, sim um “xerife” real à portuguesa que dava pelo nome de Sebastião Voltaire Pinto de Morais comissário da polícia.

Para a semana aqui contarei o resto da história.