Guerra, crime e política um “western” de Macau (II) 14-12-10


Num contexto de domínio nipónico absoluto, com a presença de Wong Kong Kit e os seus bandidos, braços armados do coronel Sawa, junto à porta de casa de cada um havia porém e sempre quem recusasse sujeitar-se à força e aos monopólios inimigos da livre concorrência.

Fernando Rodrigues, proprietário da empresa “F. Rodrigues” era um deles. O filho varão do general Rodrigues conhecido como o “pacificador de Timor”, embora longe de alguma vez ter tido jeito para a vida militar, como o pai, dele tinha herdado algumas facetas. Uma delas era a de antes quebrar que torcer em qualquer circunstância. Outra a de não admitir que para além das autoridades constituídas (portuguesas entenda-se) alguém lhe ditasse o que devia, ou não fazer e mesmo assim nem sempre. Igualmente, tinha aprendido, em casa, que ordens, mesmo que genuinamente exaradas e ainda que emitidas no quadro da sua educação familiar, eram para ser cumpridas, apenas, na medida em que não colidissem com os princípios de “Deus Pátria e Família” como dizia Salazar de que todos os seus parentes eram reverentes e reconhecidos observadores. Afinal, ainda que não fosse conde, nem barão, era filho de um general condecorado por feitos em combate. Se não era fidalgo, era filho mais merecido ainda da república, pelo que se considerava à partida não sujeito a quaisquer imposições estrangeiras. Menos monárquicas e muito menos imperiais.

Assim Fernando Rodrigues operava tão livremente quanto podia a sua rede comercial à revelia dos ditames da “CCM”. Os seus circuitos fornecedores provinham essencialmente da Indochina colónia francesa sujeita ao governo de “Vichy”, que apesar, de ter passado a protectorado nipónico, mantinha alguma independência, ainda que mínima e mais formal do que outra coisa. No entanto, permitia que o comércio prosseguisse no Sudeste Asiático independentemente das ideologias.

Essa rota era operada (principalmente) pela seita de Siu Keng Siu (“O Imortal”) que com a sua frota de juncos e um exército de gente que não se sabia ao certo se eram pescadores de profissão, piratas nas horas vagas, ou o contrário de tudo isso, se dizia ter mais de três mil homens sob o seu comando. Em suma uma verdadeira armada.

Essa frota assegurava a chegada regular a Macau de arroz a preços muito mais razoáveis do que os impostos pela “CCM” e essencialmente fora do politicamente indecoroso sistema bloqueio e racionamento imposto pelos japoneses.

Acima do “Imortal” estava Y. C. Liang, operativo dos serviços secretos ingleses com quem Rodrigues, pelo menos aparentemente, ao que se saiba, se dava muito bem. O Governador também com aquele se dava e convivia, embora formalmente tudo fizesse para parecer que não lhe concedia mais crédito público, ou consideração, do que a qualquer outro comerciante de menor importância associado da toda poderosa e veneranda “Associação Comercial de Macau” que pela colónia tivesse estabelecimento aberto. O próprio Pedro Lobo delegado do Governo na “CCS” sabia do que se passava e do mesmo modo fazia ouvidos moucos ao contrabando que singrava, ainda que evidentemente, contra os interesses da própria empresa que oficialmente geria. Porém, neste caso, como noutros, desse intrincado jogo de sombras que era Macau, maiores interesses se “alevantavam”.

Naturalmente que as ostensivas actividades de Fernando Rodrigues se tornaram notadas e o próprio coronel Sawa o advertiu várias vezes. A última advertência que lhe fez foi em pleno cais da Praia Grande, quando Rodrigues assistia ao desembarque de uma grande consignação de arroz. Os mandatários do coronel surgiram inopinadamente no local e declararam que o desembarque não passava de uma acção patente de contrabando. Rodrigues respondeu que quem tinha que classificar o que era, ou não, contrabando, eram as autoridades alfandegárias portuguesas e não qualquer outra autoridade, ainda que legitimada pela força das circunstâncias.

A conversa azedou e redundou numa cena de pancadaria pouco edificante para o prestígio nipónico. Rodrigues (cuja compleição física excedia claramente a dos japoneses que o confrontavam) pôs ponto final na discussão derrubando o oficial comandante e os dois subalternos que o coadjuvavam a murro. Nessa cena de pugilato os militares nem sequer pensaram em usar as pistolas de grosso calibre que lhes pendiam dos coldres. A disciplina militar, em que tinham sido educados desde pequenos, impedia-os de reagir a quente numa situação como aquela. Por isso, “levantaram-se, limparam-se da poeira” e foram-se embora humilhados e ofendidos, mas, acima de tudo, de face perdida.

O caso alcandorou de um momento para o outro o prestígio de Rodrigues para um novo patamar em termos de popularidade geral. No diz-se, que diz, das tertúlias da cidade, era um civil português de punho firme que tinha desafiado, sem medo, um império inteiro, enquanto o próprio Governo que, apesar de tudo, ainda possuía polícia exército e marinha, insistia em manter atitude titubeante que claudicava, sem qualquer assomo de grandeza, que se visse, perante qualquer ordem, ou mera sugestão do arrogante invasor da China e imperial capataz de Macau.

Para as autoridades locais Rodrigues era o contrário, ou seja, uma dor de cabeça que punha em causa um delicado equilíbrio que poderia ser quebrado, com consequências imprevisíveis, mas seguramente fatais, pelo mais ligeiro acto de desafio, ou manifestação de firmeza, que poderia cair bem ao orgulho nacional proclamado pela propaganda do “Estado Novo”, mas que não contribuía, na prática, com o que quer que fosse de positivo para resolver ou minorar a tragédia geral, não passando, por isso de pura e simples insensatez. O que não deixava de ser, também, verdade.

Assim o arroz desembarcado no “Cais da Praia Grande” lá seguiu o seu destino de alimentar as esfaimadas bocas de um território que pouco mais tinha para subsistir no dia a dia do que esse básico alimento.

Porém o caso não se resumiu a uma vulgar cena de pancadaria. Os socos de Rodrigues, que fizeram retirar de modo pouco digno os mandatários de Sawa e a sua escolta mais do que fisicamente terem posto momentaneamente “knok out” uns quantos oficiais japoneses colocaram, de facto, em causa o prestígio inteiro do “Exército de Kuwantung”. Dezenas de pessoas tinham assistido à cena do cais, que existia onde hoje se ergue o centro comercial “Yaohan”, a poucas dezenas de metros da estátua de Jorge Alvares. O próprio cônsul britânico John Reeves da sua residência da Calçada do Gaio, sobranceira à cidade, sorriu, fleumático observando das faldas da Guia o porto onde tudo se passara e telegrafou seguidamente, em cifra, como fazia regularmente, através do seu emissor clandestino, para Chunking, capital da “China Livre”, mais uma pequena vitória da guerra secreta que dirigia contra os japoneses.

Mas, Fernando Rodrigues assinava, nesse local e nesse momento, a sua sentença de morte.

E foi assim que Sawa, no seu quartel de Zhouhai, indirectamente combalido pelos socos do filho do falecido e histórico general, deu ordem para matar à “Seita da Ásia Florescente”, confederação de “tríades” pró japonesas de Guangdong a que Wong Kong Kit pertencia e onde ocupava um cargo paramilitar semelhante ao de major, ou tenente-coronel num exército regular.

Tradicionalmente, na colónia portuguesa muitos circunvertiam a lei,  muitos desobedeciam, muitos faziam contrabando, todos fingiam, mas ninguém tinha, até então, como Fernando Rodrigues afrontado directamente a formalidade vigente e tacitamente aceites desde sempre, fosse na paz fosse na guerra,  pela China, pelo Japão, ou fosse por quem fosse. Muito menos por Macau, a não ser, muito fugazmente, nos quatro anos frontais, de Ferreira do Amaral em meados do século XIX, sem paralelo na história. Formalidades eram e sempre foram formalidades que era necessário observar acima de tudo e de todas as circunstâncias. – Formalidades! – Mais sólidas do que as paredes de granito da Fortaleza do Monte, ou do que os “bunkers” de concreto da Guia. As formalidades eram tão concretas aqui como o cimento armado nos antípodas, ou mais ainda.

Assim Fernando Rodrigues passou a ser um alvo a abater o mais depressa possível, tal como tinha sido meses antes o próprio cônsul japonês Fukui no estertor da derrota do “Sol Nascente”. E assim foi.

Passados dois meses do incidente do cais da Praia Grande, Fernando Rodrigues, a 9 de Julho de 1945, foi assistir ao funeral do Dr. Wong (um conceituado médico local) no cemitério de S. Miguel. Quando saía da cerimónia um dos capangas de Wong Kong Kit disparou sobre ele, à boca do portão de ferro forjado do silencioso campo de repouso dos mortos, vários e estrepitosos tiros de revolver que ecoaram longe. Fernando Rodrigues sucumbiu quase de imediato atingido por seis tiros, tantos quantos o tambor da arma de calibre 45 podia disparar. Morria (ingloriamente?) horas depois, no Hospital Conde de S. Januário, um mês antes da rendição final do Japão.

Vista geral do Cemitério de S. Miguel ao portão do qual Fernando Rodrigues foi assassinado (Foto: – Macau antigo. Blogspot. Com).

O culpado seria capturado quase de imediato graças ao sistema de vigilância que tinha sido implementado pelo capitão Cunha (comandante da PSP) que tinha um dos seus polícias instalado, com telefone, numa arvora fronteira à casa de Wong Kong Kit, para onde o assassino tinha corrido, sem êxito, em busca de refúgio.

Ao ser interrogado em tribunal o homicida diria: – “Não estou arrependido, pois ele era mau; que se ele não estivesse morto e o encontrasse de novo o mataria”.

Este sicário, a soldo, acabaria por ser condenado a 31 anos de degredo em Timor. Não se sabe hoje que sorte foi a sua terminada a guerra.

A sorte de Wong Kong Kit seria pior. Portugal, a China e a Inglaterra não lhe perdoariam os crimes que cometeu.

Na perseguição, captura e execução de Wong Kong Kit teria papel determinante o, tão famoso como enigmático, comissário da polícia Voltaire de Morais

o único homem (que se saiba) a favor do qual Salazar interveio pessoalmente anulando com a sua assinatura de “Presidente do Conselho de Ministros” a sentença condenatória, que o tribunal de Macau tinha lavrado e a relação de Moçambique confirmado, declarando-o criminoso de delito comum. Isto muitos anos depois da guerra (porém esta, é outra história que poucos conhecem, mas que já foi contada).

Voltaire de Morais, não era, nem nunca foi um criminoso de delito comum na acepção vulgar do termo. Terá sido, quando muito, uma espécie de  “Javert” de “Os miseráveis” de Vítor Hugo, imbuído de uma idiossincrasia peculiar e uma forma muito própria de entender os conceitos de bem e mal.

Terminada a guerra Wong Kong Kit fugiu de Macau, mas não escapou à culpa, nem Voltaire de Morais se eximiu à ordem moral que o determinava, nem ao mandato de captura de que tinha sido incumbido pelos tribunais de cumprir. E assim foi.

Depois de uma aventura semelhante às que nas novelas de espionagem Ian Fleming deixou descritas sobre o Extremo Oriente, Voltaire de Morais acabaria por descobrir o paradeiro de Wong Kong Kit, na ilha de Cheung Chau, a poucas milhas de Hong Kong (território inglês). Como o fez e como o trouxe para Macau valerá a pena ser relatado, ainda que não na exiguidade deste artigo (talvez num próximo). Mas certo é que o maior foragido acabaria por ser apresentado ao Juiz de Instrução Criminal algemado pelas mãos do célebre comissário.

Porém, como disse anteriormente, as penas do Código Penal português, ao contrário das leis inglesas de Hong Kong, não contemplavam a pena de morte que Wong Kong Kit obviamente mereceria segundo o direito, então, universalmente aceite.

Assim sendo e para satisfazer a vingança, mais provavelmente do que a justiça, Voltaire de Morais, julgou não ter alternativa, senão a de ser juiz em causa própria como os xerifes dos “westerns” americanos e executou a pena poupando inconveniências aos tribunais. Nomeadamente a possibilidade de uma eventual e escandalosa absolvição por falta de provas. Isto já que, ainda hoje, para além de se repetir que Wong Kong Kit era o mentor de todos os crimes, não resta testemunho nem relatório que o dê como tendo disparado, ele próprio, um tiro sobre quem quer que fosse. Ao contrário subsistem histórias testemunhadas, da sua magnanimidade no auxílio a carenciados e desvalidos (principalmente da seita que liderava) que não hesitariam em comparecer em juízo a atestar o bom comportamento cívico e moral do chefe.

Depois de ter sido ouvido pelo magistrado, Wong Kong Kit, recolheu à viatura prisional escoltado por 4 agentes armados. “Ao chegar à Estrada Adolfo Loureiro… um agente abre-lhe a porta do carro e convida-o a fugir…o homem salta…e é abatido por Morais e Cascais (igualmente Comissário da PSP). Cai o pano. Lavra-se o auto que é arquivado: – malandro tentou fugir…”

No curto tempo de prisão preventiva que cumpriu Wong Kong Kit deixou um testamento escrito em jeito de poema sobre a sua vida e também sobre a sua eventual morte que, pelos vistos, previa como certa. Intitulou-o “ Despedida da Vida” Infelizmente o dito poema não consta dos arquivos judiciais de Macau. O capitão Cunha, que o recebeu das mãos do célebre bandido não o incluiu nos autos que (diga-se) também desapareceram em pó. O capitão guardou-os para si e levou-os para Portugal quando terminou a comissão de serviço em Macau. “Só é pena que o não tenha publicado até hoje” como deixa exarado Monsenhor Manuel Teixeira na única e exígua monografia sobre a guerra que deixou escrita.

O capitão Cunha, Voltaire de Morais e o seu camarada Cascais; “O Imortal”, Gabriel Teixeira, Jack Braga, Menezes Alves, o espião Gardner, o tenente Vieira, bem como o resto dos segredos da guerra, mais os versos de Wong Kong Kit, sumiram-se para sempre com a morte dos protagonistas do drama de Macau na Guerra do Pacífico.

1 Comment

  1. História fascinante! Posso utilizá-la num livro que estou a escrever?
    E quais são as fontes utilizadas para este texto? Tenho dois livros sobre o assunto, já agora.

    Escandaloso não ter aprecido NENHUM comentário em cinco anos deste texto!


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